terça-feira, 9 de agosto de 2011

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Há algumas décadas, os pensadores da educação iniciaram movimento, no sentido de deslocar o centro de gravidade do processo ensino-aprendizagem do educador para o educando. Na época, falava-se de uma educação centrada no aluno, superando àquela centrada no mestre, que tudo sabia sobre as coisas e sobre as pessoas. Tudo indica que a mensagem foi entendida de várias maneiras diferentes, resultando em discursos muitas vezes plenos de emoção, ou mesmo de difícil entendimento para os não iniciados. De qualquer forma, sempre será necessário estabelecer o que o educando precisa saber e fazer, a fim de realizar uma atividade específica por ele escolhida.

Antes de responder a questão “do que saber para fazer?”, pensemos no educando como um sujeito singular, que nunca reproduz o já feito, seja por ele mesmo, seja por outro alguém. Um músico, por exemplo, jamais toca a mesma sinfonia do mesmo modo uma segunda vez. Sua interpretação está sujeita às mais diversas interferências, todas impossíveis de serem controladas visando reproduzir o mesmo, sejam elas ambientais, sejam fisiológicas, sejam psicológicas. Um músico interpreta a mesma sinfonia de forma diferente a cada momento que a toca.

Assim, é tudo o que o sujeito faz. Em seu fazer a “mesma coisa”, sempre haverá uma diferença, um novo, um jamais realizado, mesmo quando produz um componente de um sistema físico qualquer. Se desejarmos a repetição, isto é, que o componente seja sempre igual, é preciso encontrar uma máquina, um computador, que substitua o sujeito e o faça sempre do mesmo modo e com o mesmo resultado. Diferentemente dos sujeitos, o software de um computador reproduz o igual, ou melhor, é esta a característica que neles buscamos insistentemente. Funciona como a gravação da interpretação específica de uma sinfonia, que sempre reproduz a interpretação gravada naquele momento do passado.

O sujeito, em seu permanente vir-a-ser histórico e jamais repetido, nunca será reproduzido nos softwares e computadores, que ora conhecemos. Tais softwares são valiosos porque repetem. Se não se repetissem, para que serviriam afinal? (Demo, 2002)

O mistério do homem está muito além das máquinas por ele concebidas. O código das máquinas não reproduz a combinação semântica, sintática e pragmática da linguagem em seu deslizar de intensidades e sentidos; o código do software é sempre o mesmo. A linguagem, por seu lado, é pura interpretação a partir de uma base codificada cheia de lacunas. A linguagem carrega um conteúdo, cujo sentido se transforma a cada momento, em função da emoção que atravessa a percepção da realidade, em função dos limites de simbolização do pensamento humano.

Embora se faça diferença entre realidade física e realidade psíquica, sendo esta última uma realidade considerada virtual, ambas se confundem numa realidade para o sujeito que percebe. É sobre esta realidade que estamos aqui falando.

De fato, a realidade representada pelo pensamento do sujeito nunca retrata a realidade física em si, na medida em que o simbólico não recobre inteiramente o real. O pensamento não é capaz de reproduzir o físico, a realidade material, apenas interpreta ao preencher as lacunas da percepção e do jogo simbólico das representações estruturalmente incompletas. Se voltarmos a atenção para a base orgânica, sobre a qual ocorre o pensamento, descobriremos que a trama dos neurônios e seus engramas não explicam o conteúdo deste pensamento, não explicam o mecanismo de evocação das memórias, apenas indicam que o sujeito está pensando.

Eventualmente, alguns podem imaginar a possibilidade de se controlar quimicamente os pensamentos, atuando-se sobre essa base orgânica. Isso só seria possível se houvesse uma relação direta e linear entre esta e o conteúdo dos pensamentos. Felizmente, é impossível descrever esse conteúdo a partir da visão dos campos elétricos existentes na complexidade cerebral, ou mesmo observando o comportamento do sujeito pleno que é de códigos a se decifrar. Tais campos, ou os comportamentos observáveis, apontam apenas para a possibilidade da existência de um pensamento, sem vislumbrar, contudo, a intenção do sujeito que pensa, sem vislumbrar seus motivos, sem vislumbrar suas expectativas, sem vislumbrar seu desejo.

Assim sendo, o sentido do pensamento, de seu conteúdo, transcende a base orgânica sobre a qual se estrutura. Como já foi dito, a mente humana representa a realidade percebida através de símbolos, os quais se misturam inteiramente com o deslizar das intensidades emocionais e com a incompletude estrutural da linguagem, alterando constantemente o seu sentido durante o processo de comunicação (Freud, 1990). Nesse processo, a questão não está no que foi transmitido, mas, na interpretação do que foi recebido (Sfez, 1992). Portanto, poderíamos dizer que o diálogo é um contrato com o mal entendido que, paradoxalmente humano, só se resolve no próprio diálogo.

Freud chegou a dizer que a educação seria um ofício impossível, na medida em que você sabe o que ensina, contudo, nunca sabe o que o sujeito aprende. Evidentemente, estava falando do processo de interpretação da realidade, que ocorre, tanto na transmissão do conhecimento, quanto na sua recepção. Nenhum dos dois momentos retrataria a realidade tal qual ela é, na medida em que cada sujeito elabora um sentido singular para o conhecido segundo seus desejos, interesses e intensidades emocionais. Todos, além do alcance de controle do educador, que, pelos mesmos motivos, não controla suas interpretações da realidade percebida.

Como seria, então, uma educação centrada no educando, ou mesmo no educador, se estamos diante de um permanente “mal entendido”? Como o conhecimento poderia ser passado entre as gerações, se o que se ouve é diferente do que foi dito? Tudo indica que o conhecimento é transmitido sempre se alterando, tanto a cada transmissão, quanto a cada recepção. Durante o processo educacional, a própria transformação do mundo parece dominar a comunicação e não o inverso. Ou será que há um jogo de forças entre o homem e seu mundo, energizando suas transformações? Talvez exista algo de revolucionário em todo e qualquer processo educacional, independentemente de nossos desejos mais conservadores.

Diante desse paradoxo, imaginemos um sistema educacional, no qual estão presentes todos os requisitos definidores de sistema. No nosso caso, o sistema não é físico, mas cultural. Portanto, não possui a possível estabilidade linear dos sistemas físicos, sendo dependente muito mais da complexidade dos valores e das atitudes de seus componentes do que de um relacionamento formal estabelecido por lei (Demo, 2002). De qualquer forma, há uma entrada disparadora de seu movimento, um processo de geração de resultados, alguns critérios de avaliação destes resultados e uma retroalimentação capaz de mantê-lo atualizado.

Diferentemente de um sistema físico, o sistema educacional nunca volta ao mesmo ponto de partida, isto é, a retroalimentação não serve para corrigi-lo e obrigá-lo a reproduzir padronizadamente o mesmo. A retroalimentação dos sistemas culturais serve para atualizá-los num permanente vir-a-ser transformador e criativo, nunca na reprodução do que foi, ou do que era.

Assim, tomando como referência a complexidade dos sistemas culturais, nos quais jamais se consegue reproduzir o mesmo, nos quais a repetição é puro engano, olhemos com dúvidas para o que se apresenta como modelo educacional. Um modelo sugere a possibilidade da repetição, da produção em massa, induzindo os não iniciados a acreditarem na existência de fórmulas salvadoras para os resultados da educação.

Numa tentativa de esquematizar o nosso argumento, visualizemos o sujeito dividido em conhecimentos, habilidades e atitudes. Conhecimento sendo a capacidade de representar a realidade através de símbolos a ela relacionados; habilidade sendo a capacidade de transformar a realidade através de seus atos; atitude como sendo o seu modo de ser diante da realidade. Esses aspectos se misturam numa trama maior que a soma de suas partes. Nenhum deles se manifesta isoladamente, nem pode ser deduzido a partir dos demais.

Ainda esquematizando, diríamos que uma atividade qualquer tem alguns requisitos para sua realização, os quais poderiam ser expostos em termos de conhecimento, habilidade e atitude. Tais requisitos balizariam o perfil daquele capaz de realizá-la. Assim, ao construirmos o processo educacional, teríamos como referência esses requisitos. Foi o que a taxionomia dos objetivos educacionais de Bloom pretendeu ao estabelecer domínios relativos ao campo cognitivo, ao campo psicomotor e ao campo afetivo. Cada domínio focando respectivamente um dos requisitos do perfil desejado: conhecimento, habilidade e atitude. (Bloom, 1976)

A questão, agora, é: Como definir os requisitos para uma determinada atividade? Na era do conhecimento e da comunicação, provavelmente o será perguntando às figuras representativas dessas atividades (experts) o que elas esperam como resultados objetivos, o que elas pensam sobre os requisitos para atingi-los. Contudo, ao se estruturar o sistema educacional com seus objetivos bem elaborados e focados nos requisitos estabelecidos, surpreendentemente, o processo de ensino-apredizagem não responderá ao esperado pelos “experts” das diferentes atividades. Haverá lacunas, haverá diferenças, haverá novidades inesperadas.

A avaliação do desempenho dirá que algo deve ser feito, no sentido de “melhorar” o processo, no sentido de atualizá-lo, de fazer com que ele responda às expectativas dos “experts” consultados. Algo será feito e, de novo, não será o ideal, não será o esperado. Estará fora de seu tempo. Assim, teremos um eterno recomeço, sempre “girando”, sempre mudando a cada “giro”, sempre se afastando do antes e nunca chegando ao esperado depois.

De novo, perguntamos aos “experts” o que esperam das atividades realizadas pelos “doutores”, pelos sacerdotes, pelos militares, pelos técnicos, pelos artífices, pelos que plantam nossa comida. Suas respostas estarão de acordo com seu tempo, mas fora do tempo futuro do educando. O sistema educacional partirá do agora e chegará ao antes no futuro, quando as atividades se faziam diferentes do esperado naquele presente. Finalmente, o sistema produzirá alguém que precisa de atualização, para realizar a atividade, para a qual teria sido preparado no seu passado.

A resposta para esse paradoxo parece estar numa Educação Permanente, que escape do conceito de Formação para o futuro e mergulhe no de Atualização para o presente. Atualização parece estar mais próxima do sujeito que nunca se repete; Formação parece estar mais próxima da possibilidade de repetição do mesmo, tal como ocorre “mecanicamente” nos softwares. Formação parece mais próxima do anacrônico; Atualização parece mais uma “ondulação” a acompanhar a “impermanência” da realidade interpretada.

A operacionalização desse conceito será viável se os educadores descobrirem que sabem o que já passou e puderem ouvir os “experts” das atividades em suas atualidades; se os educadores se conformarem que precisam perguntar para saber e que saberão sempre em atraso com o futuro, que será o presente do educando. O papel dos educadores neste novo tempo é criar as condições favoráveis, para que o processo educacional “gire” em seu eterno movimento de atualização, para que o educando esteja sempre vivendo o presente e com o olhar no tempo que virá.

Se alguém se perguntar o que é educar, já que não aportaremos em lugar algum neste processo, diria que o lugar finalmente esperado não existe ainda, é apenas uma imagem atraindo uma esperança a falar do futuro. A vida é um processo helicoidal em perpétuo movimento, deslocando-se para um infinito desconhecido. Quando imaginamos voltar ao mesmo lugar, estaremos um passo adiante e não reconheceremos nele o passado desejado com saudade.

Inventar constantemente a própria vida parece ser o destino humano. A educação, longe de ensinar o presente, é apenas uma plataforma de lançamento para o futuro ainda virtual. Quando se imagina que se possui o saber, descobre-se alguém tateando por caminhos nunca trilhados, por sendas do conhecimento ainda por serem desveladas, por enigmas da existência guardados pelos desígnios do Criador, pelo “de onde vim e para onde vou?” ainda sem resposta fora Dele.

Finalmente, parece que a proposta sensata seria deslocar o “velho” para o “novo” sem esquecer que, num processo, tudo está interligado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DE APOIO

BLOOM, B. Taxionomia de objetivos educacionais. Porto alegre, Globo, 1976.
DEMO, P. Complexidade e Aprendizagem. São Paulo, Atlas, 2002.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
FREUD, S. Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1990.
GARCIA-ROZA, L.A. Palavra e verdade na filosofia e na psicanálise. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editores, 1990.
MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.
RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
SFEZ, L. Crítica da Comunicação. São Paulo, Edições Loyola, 1994.

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