terça-feira, 9 de agosto de 2011

ANÁLISE INSTITUCIONAL: PERCEPÇÕES E DIFICULDADES

1 INTRODUÇÃO
Ao se realizar uma Análise Institucional, é preciso se considerar, inicialmente, que a Organização Administrativa, sob a qual a Instituição funciona, sinaliza como a cultura organizacional permeia a dinâmica administrativa da Instituição. Como se sabe, é a cultura organizacional que induz a estrutura do sistema administrativo, não o inverso. Ao se analisar relações e resultados objetivos, os pontos fortes e fracos surgem claramente no diagnóstico Institucional.
O nosso objetivo é sinalizar para o fato de que há diferentes enfoques, sejam administrativos, sejam relacionados à Psicologia das Organizações, que podem determinar tanto resultados objetivos alcançados pela Instituição, quanto o diagnóstico institucional elaborado pelo analista.
A fim de tornar o ambiente de análise mais consistente e seguro, é preciso aceitar a interdisciplinaridade, que governa todo e qualquer processo de Análise Institucional, bem como o paradigma que habita a essência de cada discurso. É sobre tais paradigmas que pretendemos discorrer a seguir.
De modo geral, admite-se que o prisma da Administração possui diferentes facetas, que apontam para outras ciências, dando-lhe um aspecto claramente interdisciplinar. Assim, quando uma Instituição decide-se pela Administração Sistêmica, sugere um aumento de intensidade numa visão multi-interdisciplinar, na medida em que o enfoque sistêmico, necessariamente, desloca suas análises das partes componentes da estrutura para o entendimento da relação existente entre elas.
Este trabalho não pretende fazer uma varredura sobre essas diferentes facetas, mas, concentrar o discurso no conceito de administração com enfoque sistêmico e suas relações com outras disciplinas. Sendo um conceito, sua abordagem implica em se traçar um relacionamento com os demais conceitos estruturantes da Administração.
Ao iluminar o gerenciamento com enfoque sistêmico, os livros de Administração descrevem diferentes atividades, nomeando-as, algumas vezes, de forma sugestiva, tal como fez Chiavenato (2005) com sua abordagem sobre a Administração de Recursos Humanos (ARH), a qual chamou de Gestão de Pessoas.
Falar de gestão de pessoas é falar de gente, de mentalidade, de vitalidade, de ação e proação.[1]
O referido autor sinaliza para um universo muito mais complexo do que qualquer universo físico, na medida em que, além dos prótons, dos nêutrons, dos elétrons e das partículas desconhecidas, a pessoa tem sentimentos, desejos, motivos para agir e é constantemente assolada pelo desamparo estrutural, fazendo-a singular entre as pessoas. Olhada como recurso, é, sem dúvida, a mais valiosa e a mais frágil das riquezas das Instituições.
Do ponto de vista sistêmico e em função da complexidade aludida por Chiavenato, é preciso dirigir o foco de uma forma cuidadosa para a inter-relação entre sujeitos, principalmente no que se refere às relações de poder e de submissão.
No entanto, é preciso estar atento para a posição subjetiva do teórico escolhido como referência. Qualquer abordagem dita científica sobre a natureza humana sofre enorme influência dessa posição subjetiva, direcionando os argumentos apresentados em qualquer trabalho de pesquisa para o leito comum.
Como já dissemos acima, os autores aqui citados estão situados no pensamento sistêmico e na complexidade, sendo considerados como pós-modernos no sentido filosófico. Tais autores partem do pressuposto que o simbólico não recobre inteiramente o real, não podendo, assim, representar uma imagem especular da natureza. Portanto, o discurso dos intérpretes da natureza possui uma margem de erro importante a ser considerada nas suas interpretações. Não obstante seja verdadeiro, há necessidade de se adotar uma abordagem teórica, que tenha boa probabilidade para se aproximar de uma interpretação razoável e aplicável.
Neste trabalho, procura-se escapar do reducionismo ilusório dos pensamentos simplistas e lineares, adaptado aos cenários estruturados, palco dos sistemas físicos criados para se repetirem sempre do mesmo modo. Um sistema cultural como o de uma Instituição é por natureza complexo, na medida em que a relação entre seus elementos é instável e necessita de uma avaliação constante em suas naturais “anomalias”. Um “chips”, por exemplo, não tem angústia, não tem menos valia, não sente raiva nem amor, não tem crise de identidade em função do modelo de relação com os demais elementos do sistema onde está inserido.
Assim, há necessidade de se estudar a natureza humana do ponto de vista de algumas das assim chamadas ciências humanas, a fim de se identificar alguns fatores, que facilitem a interpretação desta natureza e permitam a elaboração de um diagnóstico institucional coerente.
2 - PSICOLOGIA
A Psicologia, como ciência, tem como objeto de estudo o comportamento humano. De forma resumida, este comportamento é interpretado nos dias de hoje como resultado de interações entre fatores internos ao sujeito e externos a ele. No entanto, desde o meado do século XIX, na busca de uma explicação científica para o comportamento, diferentes autores da Psicologia, ora enfatizavam mais os fatores externos, ora preferiam atribuir os seus motivos às condições internas ao sujeito. Os primeiros concentraram seus estudos no campo da Psicologia Social, enquanto os outros desenvolveram suas experiências na clínica individual.
Centrar o discurso em qualquer um desses campos é reduzir a Psicologia à ideologia, modo reducionista de se perceber e e a realidade. A visão sistêmica alarga seu foco e orienta os estudos para a integração desses pólos, deslizando suas interpretações ora para um, ora para outro.
O enfoque sistêmico na Psicologia e, conseqüentemente na Administração, equilibra a atenção entre a estrutura das partes e a relação existente entre elas. O sistema social é bastante mais complexo do que o mais complexo sistema físico, fato que obriga ao seu intérprete a se deslocar, com freqüência, entre diferentes conhecimentos sobre a subjetividade e o comportamento do sujeito.
Dentre os pensadores modernos que procuram caracterizar o comportamento do sujeito de modo mais abrangente, isto é, com uma visão que escapa do reducionismo dos extremos, encontramos Abraham Maslow, psicólogo preocupado com o comportamento do sujeito no trabalho.
Maslow (2003) se fez algumas perguntas, respondidas por ele mesmo:
Todo comportamento é motivado? Pode haver muitas respostas para esta pergunta, pois ela possui diferentes significados. Todo comportamento é direcionado para um objetivo? A resposta é não, porque há comportamentos aleatórios, que são meramente expressivos, que são movimentos espontâneos ou expressões da natureza da personalidade, os quais não tentam fazer nada. Os movimentos aleatórios de uma criança saudável, o sorriso de alguém feliz, ainda que sozinho, a maneira de andar de um homem sadio, o seu porte ereto podem não ser direcionados, mas expressivos.[2]
Como a maioria dos psicólogos de seu tempo, Maslow ajusta seu argumento ao fenômeno comportamento, procurando criar algumas categorias, a fim de mais bem caracterizá-lo. Contudo, em sua proposta de teoria, não se furta a afirmar sua temporalidade e contextualização, completando com a possibilidade de se desenvolver outras idéias que corroborem, ou contrariem, sua abordagem acerca dos motivos do comportamento.
Seguindo a linha de interpretação focada no fenômeno, Maslow sugere que o motivo do comportamento passa pelo que chamou de necessidades. O pensador chegou a desenvolver uma visão esquemática ao retratá-las na forma de uma hierarquia, na qual parte das necessidades fisiológicas, seguindo com a necessidade de segurança, com a necessidade de amor (interação com um objeto específico), necessidade de estima (relacionado com a liberdade de expressão, o respeito e estima do grupo) e a necessidade de auto-realização (o que um sujeito pode ser, ele deve ser)[3].
A seguir, o teórico estabelece algumas pré-condições para a satisfação das necessidades básicas:
Tais condições como a liberdade de falar, liberdade para fazer o que deseja desde que não acarrete nenhum prejuízo a outrem, liberdade de se expressar, liberdade de buscar informações, liberdade para se defender, justiça, equidade, honestidade, ordenamento no grupo são exemplos de tais pré-condições para a satisfação das necessidades básicas.[4]
No pensamento de Maslow, as necessidades básicas são grupamentos de metas de satisfação de mesma natureza. Além disso, o sujeito é motivado pela manutenção, ou criação, das condições básicas geradoras de possibilidade de satisfação, tal como foi exposto anteriormente. As metas, por seu lado, estão todas relacionadas entre si e se organizam na determinação do comportamento do sujeito segundo a intensidade da necessidade, a qual se refere.[5] .
Mais adiante, o autor enfatiza que:
Qualquer frustração ou possibilidade de frustração dessas metas basicamente humanas, ou ameaça às defesas que as protegem, ou às condições sobre as quais se sustentam, é considerada como uma ameaça psicológica.[6]
Assim, o comportamento é fundamentalmente acionado por metas de satisfação de necessidade, o que permite dizer que, escapando da armadilha do fenômeno, o comportamento tem um sentido que é dado pelo objeto de satisfação. Assim, e de um modo certamente complementar, a Psicologia moderna procura entender o comportamento como uma forma de linguagem, isto é, o sujeito fala através de seu comportamento.
Com tal enfoque, o comportamento é acionado por um impulso interno, ou pelas condições ambientais, tem um modo de satisfação, tem uma intensidade e uma meta de satisfação associada à necessidade, ou mesmo é acionado pelas ameaças às condições que possibilitem a realização das metas. Resumindo, o comportamento tem causas, modos de expressão, metas e condições para se manifestar.
São afirmações extremamente importantes para os gestores de recursos humanos preocupados com a motivação das pessoas que trabalham, fundamento que é da pró-atividade no processo administrativo.
Aproximando-se da Psicanálise, Maslow assim se refere à condição subjetiva das necessidades básicas:
Aquilo que temos chamado de necessidade básica é, com muita freqüência, inconsciente, de forma geral, muito embora ela possa tornar-se consciente mediante introdução de técnicas adequadas.[7]
De um modo bastante sugestivo, Freud definiu o objeto de estudo da Psicanálise como o inconsciente do sujeito[8]. Não caberia neste trabalho aprofundar o discurso no pensamento freudiano, a fim de entender a estrutura psíquica proposta por ele, composta pelas instâncias ego, id e superego e suas manifestações inconscientes. Além disso, para entender a motivação do sujeito na teoria freudiana, há necessidade de se percorrer um caminho um tanto tortuoso pela obra desse autor, procurando visualizar sua interpretação do contexto, no qual o comportamento se manifesta.
A Psicanálise, ao estudar o psiquismo humano, depara-se com posições subjetivas (paradigmas), a partir das quais o sujeito interpreta as coisas do mundo. De um lado, espalha-se o universo maniqueísta separando o bem do mal, o certo do errado, numa atitude esquizóide, na qual qualquer diferença é um mal; enquanto, de outro, encontra-se a possibilidade de se conceber diferentes positividades. A partir desta última visão de mundo, o etnocentrismo, o ideal cultural, é abandonado, dando lugar à arbitrariedade e singularidades das estruturas culturais.
O interessante dessa constatação é que ela não é um “modelo de visão de mundo”, mas, uma interpretação de como o sujeito se organiza em suas interpretações sobre este mundo. Freud, em um texto sobre psicopatologia[9], demonstra a origem de diferentes atitudes decorrentes de como o sujeito estrutura seu narcisismo. Num breve resumo, esse pensador admitia a existência de uma busca incessante pela completude, pela felicidade plena, em conflito com os limites impostos pela cultura, na qual o sujeito está inserido.
Quinze anos mais tarde, teorizando sobre a felicidade e a cultura, Freud afirmou que “a felicidade é inteiramente subjetiva”[10]. Mais adiante, no mesmo texto, declara:
É suficiente, portanto, repetir-se que a palavra cultura designa toda sorte de operações e normas, que distanciam nossa vida de nossos antepassados animais, e que servem a dois fins: à proteção do ser humano frente à natureza e à regulação dos vínculos recíprocos entre os homens.[11]
Na verdade, é a regulação entre tais vínculos recíprocos que causa o desconforto na busca da felicidade, na medida em que o gosto, o prazer, o valor, o desejo, a vontade, são de ordem subjetiva e individual, portanto singular, carregando enorme potencialidade de conflito entre os humanos. Toda cultura se sustenta nesses vínculos e, como tal, toda Instituição deve ser considerada como resíduo fractal da cultura.
Uma das funções da cultura é temperar as relações entre sujeitos, estabelecendo direitos, deveres, funções e responsabilidades para os que nela vivem suas vidas. Antes da contemporaneidade, numa descrição simbólica de épocas primitivas, Freud fez uma imagem de um ser todo poderoso, que dominava a todos pela força. Seus irmãos e seus filhos digladiavam-se pelo poder, destruindo-se mutuamente e, às vezes, superando o que foi chamado por ele de “pai da horda primeva”. Numa sucessão de embates pelas fêmeas e pela comida, as disputas se sucediam. Um dia, os irmãos se reuniram e decidiram estabelecer algumas regras, a fim de estabelecer a paz. No tratado, decidiram distribuir as fêmeas entre os machos e a comida entre todos os membros da família, numa tentativa de regular as disputas internas. Além disso, resolveram dividir as responsabilidades pela busca de alimento e pela garantia da segurança do grupo, criando o primeiro modelo de cultura, que serviria de referência arbitrária para todos os que o sucederam.[12] .
Se as regras da cultura são combinadas e, portanto, arbitrárias, o certo e o errado, o bem e o mal, também são definidos segundo o que foi combinado. Como tal, possuem falhas e contradições, que criam as condições para a infelicidade. Freud comenta as dificuldades humanas de alcançar a felicidade:
Já demos a resposta quando sinalizamos as três fontes de nosso sofrimento: a hiperpotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos recíprocos entre os homens na família, no Estado e na sociedade.[13]
Na verdade, essa insuficiência das normas cria uma insegurança semelhante àquelas decorrentes das leis da natureza, que caracterizam sua hiperpotência frente à fragilidade do corpo humano. Em sua arbitrariedade, o sujeito (re)elabora eternamente a lei ideal, sem nunca chegar a arquitetá-la definitivamente. Paradoxalmente, são leis ideais que exacerbam o conflito e aguçam a frustração, na medida em que regulam o desejo, fazendo do que é bom um mal.
Freud foi bastante perspicaz ao descrever esse conflito entre o bom, o bem, o mal e o mau, quando aponta para a impossibilidade natural e filogenética do sujeito discernir entre o que é um bem e o que é um mal, isto é, a definição do que é um bem não é hereditária, mas aprendida. O que é herdado é a sensibilidade ao mau, que causa dor, e ao bom, que dá prazer.
O discernimento se dá quando o sujeito é obrigado a aceitar que, nem sempre, o que lhe trás prazer e felicidade é um bem, segundo as regras do Estado, da nação, ou da sociedade. Para Freud, essa aceitação incondicional tem uma causa localizada no início do aprendizado sobre as regras da cultura, na qual o sujeito está inserido:
Descobre-se facilmente em seu desamparo e dependência de outros sujeitos; sua melhor definição seria: angústia frente à perda de amor. Se perde o amor do outro, de quem depende, fica desprotegido frente a diversas classes de perigo, e, sobretudo, frente ao perigo de que este ser hiperpotente lhe mostre sua superioridade na forma de castigo. Assim sendo, o mal é, no início da vida, aquilo pelo qual o sujeito é ameaçado com a perda do amor.[14]
O sujeito adulto herda, assim, uma permanente insegurança frente à reação daquele a quem vincula sua dependência. Sobre esse assunto, chega a afirmar que a prematuridade do ser humano o condena a uma dependência dos adultos muito mais longa e intensa do que seria esperada em um mamífero. Essa dependência cria as primeiras situações de perigo em face à fragilidade do corpo humano, produzindo a necessidade de ser amado, para que seja protegido. Segundo Freud, o sujeito jamais se livra da sombra dessa dependência, transferindo sua imago entre as situações de sua vida posterior[15].
A projeção dessa dependência, a necessidade de aprender as regras da sociedade onde estará inserido e o julgamento sob o poder dessa sociedade farão do sujeito um alguém sob ameaça, caso as regras não lhe estejam claras e o comportamento dele esperado descrito e entendido. Sem isso, o fantasma da horda primeva e a força bruta de seu “pai” tornarão o sujeito encurralado em sua angústia diante da imago primitiva e inconsciente. Sem entendimento não há liberdade, sem um mapa que oriente o que fazer e o como fazer, não há sossego para a alma humana. Do mesmo modo, é possível pensar-se o funcionamento de uma Instituição e o que representa para seus membros.
Se a Instituição decide-se pela administração sistêmica, não pode esquecer que o poder da cultura pode cercear a liberdade do sujeito e torná-lo um “remador” sem força e sem vontade. A liberdade não é cerceada apenas se estabelecendo fronteiras físicas, espaços de reclusão. O impulso criativo adormece diante da frustração das necessidades básicas propostas por Maslow. A incerteza e a crítica sem um fundamento nas regras acordadas tornam o sujeito incapaz de discernir antecipadamente entre o bem e o mal, percebendo a possibilidade de um “mau” causar-lhe dor como resultado de seu comportamento. Inibido em sua criatividade na busca de satisfação, descobre-se desejoso de mudar de ambiente, de escapar de onde o sujeito não se reconhece e não é reconhecido como tal.
Freud não foi o único a observar o sujeito na cultura. Para os teóricos da Psicologia, a questão será sempre o como o sujeito aplica as regras sociais aprendidas e como é por elas julgado. O modo como as aplica se manifesta em seu comportamento. Esse comportamento nunca se liberta da sombra do passado que paira sobre o inconsciente do sujeito, podendo distorcer-lhe a percepção da realidade, produzindo o chamado comportamento pouco adaptado.
Assim sendo, existem três aspectos que precisam ser considerados ao se pensar o comportamento do sujeito: a existência de necessidades básicas, o modo de satisfazê-las e as condições para a satisfação (regras e recursos). O cuidado do analista institucional está em não se aprisionar em um desses aspectos, mergulhando assim num reducionismo teórico, que, ao simplificar a análise, distorce a interpretação e falseia a conclusão.
Em sua “Psicologia do Desenvolvimento”, Cláudia Davis (1982)[16] se reporta às observações de Piaget sobre o comportamento moral das crianças (atitude frente às regras). Lá, demonstra o jogo inconsciente específico frente às frustrações, na medida em que as regras são arbitrárias, isto é, as frustrações, neste caso, têm origem não natural, não decorrem da hiperpotência da natureza.
As observações de Piaget comprovam o discurso freudiano acerca da natureza humana lhe acrescentado um sabor especial, ao observar como as crianças lidam com as regras de relação entre sujeitos. Suas brincadeiras possuem regras específicas, que devem ser combinadas e obedecidas por todos. É, sem dúvida, um micro-cosmo que retrata como funciona a cultura.
O exemplo encontrado por Piaget, a fim de demonstrar suas observações, foi a partir do jogo de bola de gude:
O jogo de bolinha de gude parece fornecer, desta forma, uma condição privilegiada para a análise da moralidade. As regras do jogo determinam a maneira que os jogadores devem se portar – o comportamento esperado de cada jogador – controlam os direitos individuais, regulam o direito à propriedade e, nada mais são do que uma criação cultural, transmitida de geração em geração.[17]
De modo semelhante, Freud destaca a relação entre liberdade e cultura:
(...) a liberdade individual não é um patrimônio da cultura. Foi máxima antes de toda cultura; é verdade que nesses tempos não tinha valor, por que o indivíduo dificilmente estava em condições de preservá-la.[18].
Mais à frente, aponta que, no curso do desenvolvimento, as leis, regras sociais e valores da cultura acabam se contrapondo ao amor, portanto, à felicidade[19]. A capacidade natural permite distinguir entre o que é bom e o que é mau, o que causa prazer e o que causa dor. Como já foi dito acima, as regras da moralidade definem em grande parte que nem sempre o que é bom é um bem, classificando diferentes fontes de prazer como um mal. Essa limitação é geradora de angústia e o sujeito só se submete a elas num contrato de pertencimento com a cultura, que o protege da natureza e do outro mais forte[20].
O que parece interessante entre as crianças é o deslocamento de perspectiva da realidade observado por Piaget. Em certa faixa de idade, a criança determinava o uso das regras de forma egocêntrica, isto é, de forma narcísica no conceito freudiano. Entre quatro e sete anos, as crianças se comportam no jogo de forma semelhante ao que fazem na comunicação, isto é, são incapazes de ouvir o ponto de vista do ouvinte, não havendo reciprocidade. Com razão, ou sem razão, isso não faz parte do argumento infantil, aprisionado no amor e na ameaça existente em sua perda. Depois dos sete anos, até aproximadamente os dez anos, já discutiam sobre as regras a serem empregadas, não obstante as considerassem intocáveis em suas fantasias, na medida em que o seu modo de jogar foi criado por alguém poderoso, como o pai, ou irmão mais velho. A noção de competição começa então a aflorar e, desse modo, é possível se fazer um paralelo com a linguagem e com a comunicação, ocorrendo nesses momentos tentativas isoladas de se levar em consideração o ponto de vista do ouvinte. Contudo, a realização do jogo tornava-se difícil pela disputa de qual regra seria a melhor. [21]
Se o olhar for lançado para os atritos entre as culturas do mundo, pouca diferença haverá entre elas e esse estágio infantil do sujeito. Religiões e ideologias matam e morrem em nome de uma verdade absoluta perdida em sua relatividade. Assim, também, são os sujeitos aprisionados nesse estágio do desenvolvimento infantil. Numa compulsão a repetição, o inconsciente repete visões e percepções da realidade estreitadas pelo preconceito e pelo etnocentrismo. Nas instituições, não poderia ser diferente.
Depois dos dez anos, a criança começa o estágio da moralidade autônoma, que é comentada por Cláudia Davis do seguinte modo:
Agora ela já sabe que as regras podem ser alteradas, que elas são mantidas somente por consentimento mútuo. Os pais e outras figuras de autoridade já não são vistos como pessoas infalíveis. A autoridade não é mais aceita sem discussão, e a criança se sente capaz de questionar as regras e de mudá-las, se assim for considerado necessário. Na medida em que a criança participa do processo de elaboração das regras, ela se sente obrigada a respeitá-las e a cumpri-las.[22]
Se o olhar descansar um pouco sobre as conclusões de Piaget, descobre-se que existe um momento inconsciente de nascimento da Democracia, que, em muitos casos, não é cultivado pelo sujeito. O jogo e a brincadeira sugerem que a leis devem ser combinadas e o julgamento sobre o bem e o mal, o certo e o errado, deve ser acordado entre os sujeitos formadores da cultura. O lugar do Transcendente não aparece nesse momento. O Mistério é de outra ordem e muito pessoal. Obedece ao ser e ao não ser, não ao estar, ou ao modo de ser.
Contudo, na cultura, algumas regras são valorizadas e imutáveis, consideradas como naturais, ou divinas, embora sejam arbitrárias e tenham sido circunstanciais em algum momento do passado. São valores a serem preservados como memória da origem das regras culturais construídas pelos antepassados. Outras, no entanto, são caracteristicamente circunstanciais, fazendo parte do contexto particular onde o sujeito está inserido. Conhecer os dois conjuntos é condição de sobrevivência para o sujeito na cultura e na Instituição.
A linguagem é o instrumento de criação e materialização das regras referidas acima. Tal como a linguagem, os elementos sociais se relacionam segundo uma “sintaxe”, cada qual submetido à semântica atribuída pelo sistema de inclusão. Portanto, tudo na cultura passa pelo sentido, que sustenta a expressão do comportamento do sujeito e o juízo que dele se faz.
Assim sendo, a inserção nas regras e valores da Instituição, é condição que possibilita a sobrevivência profissional do sujeito, na medida em que, em muitos sentidos, o social da Instituição é um fractal da sociedade. Não é suficiente o juízo de existência dos objetos em relação sistêmica, mas, principalmente, integrá-los num juízo de valor, produzindo assim um conjunto de referências, que balizam o relacionamento entre sujeito e objeto e entre sujeitos.[23]
De posse das regras e dos valores da Instituição, o sujeito que trabalha pode construir seu mapa de navegação na vida social e produtiva do sistema no qual está inserido. Assim, garante uma segurança relativa em seu trajeto frente o risco da perda do amor e ao desamparo, caso deslize para o “acostamento de seu caminho”, ou desvie para “estradas secundárias”, afastando-se do rumo desejado pela Instituição.
Do ponto de vista da Psicologia, o que trás segurança para o sujeito é o conhecimento da regras da cultura, a partir das quais funda suas referências na tentativa de satisfação de suas necessidades. Assim, a cultura da Instituição e seus valores também balizam as margens de possibilidade de satisfação para o sujeito, sendo necessário conhecê-los e praticá-los, sob pena de exclusão, ou da negação ao pertencimento. A paz no relacionamento interpessoal depende do diálogo, de um acordo, onde se escuta o que o outro pensa e deseja, sempre considerando as regras e valores do sistema cultural onde estão inseridos.
Certamente, este enfoque da Psicologia incidirá sobre o modelo de Avaliação do Desempenho, seja da Instituição, seja do sujeito. (próximo artigo)
3. FILOSOFIA
Assim, a partir do fenômeno observado, isto é, da estrutura existente que regula a percepção e o juízo sobre as interações observadas na Instituição, serão interpretadas possíveis causas e conseqüências, oriundas ou dirigidas, à cultura organizacional, relacionadas ao tema aqui tratado. O argumento filosófico terá um papel preponderante no sentido a ser atribuído às interpretações desenvolvidas neste trabalho.
Esse cuidado é importante, na medida em que o discurso aqui proposto pretende se afastar das verdades absolutas, que fazem as interpretações sobre o real sombrias e definitivas. Aqui, pretende-se expandir o foco da Filosofia, sinalizando-se constantemente para a possibilidade da existência de diferentes interpretações para o mesmo objeto, ou situação, todas sem se excluírem em suas positividades. Esse fato é garantido pela singularidade do sujeito, que percebe e interpreta, e pela impossibilidade do simbólico recobrir inteiramente o real.
Com esse cuidado, é possível dizer-se que a Filosofia não é um campo neutro do conhecimento. Filósofos como Deleuze e Guatarri chegam a afirmar, de um modo quase contundente, que os embates filosóficos não contribuem em nada para a Filosofia, pois, “(...) o mínimo que se pode dizer, é que eles não fariam avançar o trabalho, já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa”[24]. O interessante da afirmação situa-se no fato das críticas, que um filósofo faria a outro, partirem de pressupostos diferentes, impedindo o entendimento recíproco. Possivelmente, o mesmo se daria se tivessem 11 anos de idade e jogassem bola de gude, diria Piaget...
Assim, esses filósofos sustentam um impedimento ao que chamou de conversação democrática universal:
Nada é menos exato e, quando um filósofo critica um outro, é a partir de problemas e de um plano que não eram aquele do outro, e que fazem fundir antigos conceitos, como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas. Não estamos nunca sobre um mesmo plano. Criticar é somente constatar que um conceito se esvaece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio.[25]
A compreensão dessa afirmação está na concepção da existência de planos, sobre os quais o discurso é distribuído. Assim, o filósofo medita sobre o plano transcendente e o plano imanente, procurando situar a criação de novos conceitos no plano de imanência, sempre com o cuidado de não referi-lo a outro plano de imanência, já que, neste caso, seria transportado para um plano de transcendência.
O plano de transcendência elimina a singularidade do contexto, reduzindo as interpretações à monotonia do mesmo, independentemente do fluir dos acontecimentos. Num enfoque transcendente, as causas dos acontecimentos são reduzidas a algumas verdades, que encobrem a historicidade dos elementos e a relação existente entre eles no sistema social, impossibilitando o surgimento de novas “regras para o jogo da vida”.
De outro modo, o plano de imanência limita-se ao contexto observado e a sua singularidade, obrigando ao analista institucional a buscar na relação atual entre os seus elementos a causa da degradação da função do sistema social observado. Neste trabalho, será privilegiado o enfoque imanente nas análises, avaliações e interpretações apresentadas.
É possível dizer-se que os universais e a transcendência situam-se no mesmo plano, na medida em que o sentido do discurso é outorgado por planos superiores. Estabelecendo uma diferença com outros personagens e situando o filósofo como um personagem a ser entendido sobre um plano de imanência, Deleuze e Guatarri procuram assim conceituá-lo:
Os filósofos são aqueles que instauram o plano de imanência como crivo estendido sobre o caos. Eles se opõem, neste sentido, aos sábios, que são personagens da religião, pregadores, porque concebem a instauração de uma ordem sempre transcendente, imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos outros.[26].
Na verdade, o que o filósofo tenta superar é a arrogância da plenitude existente em alguns discursos, escapar da possibilidade de saber aquilo que lhe é impossível saber, ou perceber, ou mesmo inventar, uma totalidade. É verdade que o discurso está submetido de forma inescapável à estabilidade do sentido, mesmo que singular, sem o que não haverá possibilidade de entendimento entre sujeitos. No entanto, paradoxalmente, limita-se ao plano de imanência em toda sua criatividade, supondo, ainda, a possibilidade de outros discursos tão verdadeiros e diferentes quanto possíveis, embora imersos nessa totalidade impensada, sobre a qual se espraiam. A transcendência do sentido é uma ilusão, que precede a todas as outras.[27]
Deleuze e Guatarri comentam a aposta de Pascal sobre a existência de Deus, na qual nunca se perde a aposta, e sugerem que a existência imanente daquele que crê em Deus é o que de fato existe para a Filosofia[28]. Mais a frente, assim se referem ao plano de imanência:
Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham a necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam e decidiriam que um é melhor que o outro. Ao contrário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência.[29]
Aqui, também, não se pretende mergulhar no plano da Antropologia, ou, especificamente, na discussão acerca da ilusão do etnocentrismo, mas sim procurar estabelecer um plano de imanência, sobre o qual o discurso específico acerca da gestão pró-ativa será estruturado. Portanto, a proposta desta fundamentação é sinalizar para a possibilidade de se traçar um plano de imanência, no qual o objeto de estudo será pensado, admitindo-se a possibilidade da existência de outras imanências, mas, escapulindo da ilusão transcendente de transferir referentes e conceitos entre diferentes planos.
Como foi colocado no início deste capítulo, a natureza do sujeito está sendo balizada pela noção de inconsciente, de singularidade e de complexidade sem, contudo, admiti-la como plano transcendente de referência para a interpretação. O constructo teórico escolhido é mera referência de sentido para o discurso e não verdade absoluta.
Nesses termos, é possível dizer-se que a administração sistêmica não é algo isolado e divorciado de inúmeras abordagens científicas, realizadas em diferentes objetos de estudo situados sobre o mesmo plano de imanência. Com essa ótica, a fundamentação teórica aqui sustentada pretende sugerir uma relação de intimidade paradigmática entre a Fenomenologia de Heidegger, o Estruturalismo, a Psicanálise e o Pensamento Sistêmico, quando associados à noção de Complexidade, na descrição de um plano de imanência, cujas referências sustentam o argumento deste trabalho.
Portanto, cabe aqui insistir, o que se pretende neste capítulo é fundamentar a abordagem científica desta pesquisa com base num plano imanente definido, sobre o qual estará situado a Instituição analisada, bem como as questões específicas relacionadas ao seu negócio e à motivação dos sujeitos que lá trabalham.
Assim sendo, acredita-se que, inicialmente, há necessidade de se conceituar a complexidade, na medida em que é aqui considerada como fator paradigmático de associação entre a Filosofia, a Antropologia, a Lingüística e a Psicologia já esmiuçada anteriormente.
Nesses termos, a complexidade opõe-se ao reducionismo, à simplificação do entendimento dos fenômenos naturais e culturais. Ao delimitar o seu objeto de estudo a partir de referenciais de um plano transcendente, a ciência corre o risco de reduzi-lo a algo isolado do contexto no qual é observado; corre o risco de omitir a impossibilidade estrutural de o cientista perceber o real tal como ele é; corre o risco de aceitar o resultado da análise sem considerar o muito de interpretação agregado, de confundir coisa e representação, de confundir ser e ente [30].
Coisa observada, mundo e sujeito que observa são inseparáveis. Ao dar sentido à coisa, transformando-a em objeto, o sujeito a introduz no contexto cultural, dando-lhe um significado peculiar segundo o modo de ser de sua aparição como objeto. O equívoco, ou mesmo certa arrogância do modelo transcendente, é pensar que se observa um objeto com uma essência, que lhe confere um sentido pleno fora de contexto, e não uma coisa sem essência e, portanto, sem sentido anterior e fora do contexto de observação.
Assim, a representação mental ocorre a partir do sentido que o sujeito dá à coisa, a partir da relação com os outros entes de seu mundo, fazendo dela um objeto desde sempre pensado e esperado, mas, nunca suficiente e sempre faltoso. O sentido está num plano imanente, isto é, brota da relação entre os entes, é histórica e impermanente. A “alma” de uma Instituição é apenas e dela mesmo, intransferível, singular em todos os aspectos.
A permanência, a estabilidade do sentido do ser é ilusória, como já foi afirmado anteriormente. A cada giro da verdade uma nova face da coisa é vislumbrada e altera a própria verdade. De cada canto que se lança o olhar, o ente desliza em diferentes imagens desde sua extensão, aparecendo um modo de ser a cada volta do estilo, do lugar, do tempo onde é observado.
Portanto, uma interpretação depende da percepção que, por sua vez, depende do sentido dado aos objetos e à relação entre eles. Avaliar um comportamento não é como medir uma extensão, na medida em que o sujeito que o avalia é o mesmo que o percebe.
Ricardo Jardim (1994) assim se refere ao pensamento de Heidegger:
Heidegger insiste em que a relação cognitiva sujeito/objeto, na qual o ente aparece não mais na disponibilidade de uso, mas como algo de estável, permanente, subsistente, não é um fenômeno originário, mas fenômeno derivado do ser-no,mundo.[31]
Tomando como exemplo uma criança a observar a raiz de uma árvore, ela poderia perguntar: “o que é isto?”.Em resposta, talvez ouvisse algo completamente fora de sua compreensão de mundo, fazendo da árvore e de sua raiz um “estranho”. De todo modo, a coisa observada precisa ser incorporada ao contexto cultural do observador, para que se desvele em seu ser. Ao dar sentido à coisa, o sujeito reconhece um uso específico, reduzindo, inconscientemente e de forma “transcendental”, as possibilidades do ser a uma só, àquela que se encontra no interior do próprio sujeito.
Contudo, a “coisa-árvore” observada pela criança tem inúmeras possibilidades de aparição, além da utilidade que lhe foi passada como resposta, levantando o véu de sua misteriosa estranheza: o olhar do botânico, do poeta, do pintor, do ambientalista, do lenhador, do bombeiro, do construtor de casas e de móveis, daquele que sente frio, daquele que busca uma sombra com sua amada, e de tantos quantos se estranharem com a coisa e lhe atribuírem um sentido pelo olhar de seu mundo. Assim é cada sujeito em cada Instituição.
Para Heidegger, a coisa se torna um ente quando nos relacionamos com ela, desde que pertença ao nosso mundo[32]. O próprio homem é um ente, na medida em que sua percepção de si mesmo se dá no seu mundo. O ser do ente, portanto, é o modo de ser da coisa ao ser incorporada na organização de mundo do ente observador (Dasein)[33].
O mundo é um arranjo de entes, uma maneira pela qual o ser aparece, uma manifestação temporal e histórica do ser[34].
Em oposição à fenomenologia, a transcendência sonha com a permanência do ser, com sua essência, com a estabilidade do eterno presente, com a possibilidade de se transferir soluções entre Instituições. Essa não é uma crítica dirigida à metafísica ou ao racionalismo absoluto, que têm seus próprios planos de referência. Aqui se pretende estabelecer uma posição diferente daquela que sustenta a permanência do ser, “deixando de lado as qualidades sensíveis (cor, som, sabor, odor, etc), as relações sociais, os eventos contingentes da história”[35], relegados à condição de aparência.
Assim, o processo de avaliação do comportamento precisa escapar da armadilha cartesiana, que supõe a verdade antes do comportamento, antes de tudo. O que é um bem e o que é um mal precisa ser combinado, a fim de balizar o julgamento do comportamento do sujeito. A “verdade” está lá, no plano de iman
Não será tarefa fácil, na medida em que, a transcendência sempre esteve presente em nossa visão de mundo, desde o pré-socrático Parmênides e a permanência de sua essência. Naquele momento, parece que Heráclito e seu devir foram abandonados e o caminho seguiu por Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes e outros mais recentes. Ancorada nessa herança, a transcendência buscou “o que está além do tempo, o que repousa em si mesmo e não precisa de mais nada para existir, cujos protótipos são a Idéia platônica e o Deus aristotélico (ato puro, motor imóvel, pensamento eterno de si mesmo).”[36]
Em sua linha de descendência, Descartes inaugura o que se entende por modernidade e o conceito de sujeito (penso, logo sou). Em seu projeto filosófico, Descartes sustenta a possibilidade de controle sobre a ilusão dos sentidos, sobre a armadilha das crenças. Contudo, não pode escapar da armadilha do solipsismo em seu isolamento do ser pensante e de seu pensamento puro[37]. Ao pensar o conteúdo do pensamento, contudo, o ser pensante apenas descobre o pensamento de si mesmo, na ilusão de estar pensando seu mundo. Assim, torna-se para si mesmo uma referência transcendental no ato de observar tudo o que o rodeia.
Ao isolar os sentimentos da percepção, o filósofo da razão construiu um mundo linear onde toda compreensão é possível, não obstante improvável sem o recurso da transcendência. Portanto, a questão está na possibilidade de compreensão plena, imutável, absoluta, e não na compreensão que o sujeito tem de seu mundo a partir de um lugar e no momento em que lhe lança o olhar indagador. O método não seria suficiente para desvelar o ser do ente[38]. Se o analista escorrega na armadilha do pensamento cartesiano, não descobre a “alma” da Instituição.
Em dado momento, a filosofia imaginou ser possível recobrir o real com sua trama simbólica, imaginou a possibilidade de superar a transcendência com a representação simbólica de sua razão. Deus, então, estaria morto! No entanto, parece que o Mistério continua e seguimos desconhecendo Suas razões, Seus desígnios. A Revelação que nos chega não é mais que a palavra dos homens imaginando recobrir a Razão desconhecida com seu discurso. Se houvesse uma Revelação, saberíamos os Seus desígnios e perderíamos a fé, perderíamos para a razão dos homens a intuição derradeira de nossa existência sem essência compreensível.
A definição de ente proposta por Heidegger, na qual sua aparição se dá segundo o olhar do observador que o incorpora em seu mundo, dando-lhe sentido, desloca a fixidez reducionista da hipótese de cobertura plena do real pelo simbólico para o universo da complexidade, da imanência e da impermanência.
Assim, como não pretende explicar a Razão desconhecida, o filósofo não se ilude com a possibilidade de uma essência anterior à aparição do ente, que lhe dê um sentido a priori. No entanto, a percepção do sujeito é sempre submetida à armadilha inconsciente da transcendência imposta por sua subjetividade, desafiando a imanência manifestada em seu discurso. Nem sempre se é o que se fala.
Tropeçando na mesma armadilha, a Psicologia desliza pelo reducionismo da medição do comportamento, tentando explicá-lo e controlá-lo, considerando a existência de uma essência bondosa nos humanos, explicando sua transformação em maldade pela corrupção exercida pelo meio, no qual está inserido. Se a essência se transforma, rompe-se com o plano de transcendência e com a ilusão da permanência. Deste rompimento, chega-se ao sujeito que carrega o bem e o mal dentro de si e faz suas escolhas apoiado em sua ética pessoal. Quando um psicólogo teoriza sobre a motivação do sujeito a partir desse último entendimento da natureza humana, está apenas levantando a ponta de um véu, que desvela uma aparição do modo de ser, sem reduzi-lo a este simples olhar que o interroga.
A atribuição de sentido transcende à razão, mergulhando no universo das intensidades pulsionais, que desconhecem o bem e o mal próprio do plano de imanência, sobre o qual espraia-se a cultura. Algo acontece no sujeito regulando suas ações e o introduzindo na ética que pacifica o relacionamento interpessoal, antes representado pelo jogo de bola de gude. São essas intensidades pulsionais que transportam a Psicologia para o universo da complexidade, na medida em que a singularidade dos motivos não permite suas transposições entre sujeitos.
Assim sendo, ao lançar o olhar interrogador para uma Instituição e para o clima de seu ambiente organizacional, será preciso estar atento, para não transportar de outros planos imaginárias semelhanças com a aparição percebida e buscar avaliá-la a partir de acontecimentos de outros contextos. Corre-se, assim, o risco de se comparar e concluir interpretações e conceitos, válidos apenas em outras imanências. Importar verdades é próprio da transcendência, que supõe o permanente e o universal em todas as imanências.
Se a Instituição está procurando transformar a metodologia de administração, cabe sempre perguntar se a avaliação do desempenho estaria fundada na subjetividade do avaliador, ou se existem referenciais objetivos fundados em regras combinadas entre os sujeitos. O deslocamento da visão administrativa cartesiana e vertical para uma sistêmica e de relação sugere o peso dessa pergunta. (ver próximo artigo)
Além disso, o sistema administrativo é estruturado sobre sujeitos, exemplos de incerteza em seus comportamentos e relacionamentos. Tudo o que foi pensado até o momento sugere que não existe um modelo ideal de administração, mas, um conceito orientador da interpretação e do entendimento. Entendimento sempre incompleto e dependente das circunstâncias e das conjunturas singulares.
Apesar da incerteza e da complexidade, ainda é possível avaliar-se um comportamento, desde que seja sobre um plano de imanência, isto é, que as regras de relação sejam combinadas e o que se espera de cada um seja objetivado e mensurado segundo os referenciais acordados.
Edgar Morin (1999) exemplifica a complexidade de uma forma paradoxalmente simples:
Por exemplo, se tentarmos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante.[39]
A abordagem pela via da complexidade não torna os problemas inabordáveis. Essa seria a visão reducionista, da qual se pretende distanciar neste trabalho. Contudo, o modelo analítico racional está tão arraigado na cultura ocidental, que sempre será difícil contorná-lo completamente. O modelo científico neo-positivista e a definição de cópia e de simulacro platônica estarão sempre presentes, desafiando a validade das conclusões a partir da psicanálise, da fenomenologia e da complexidade, que ignoram a neutralidade do sujeito frente ao objeto.
Nessa via:
(...) o observador-conceptor deve se integrar na sua observação e na sua concepção. Ele deve tentar conceber seu hic et nunc sociocultural. Tudo isso não é só uma volta da modéstia intelectual, também é volta a uma aspiração autêntica da verdade[40].
Inserida no contexto das ciências sociais, a Psicologia é questionada em sua cientificidade, se for pensada a partir de alguns paradigmas das ciências físicas e do neo-positivismo. Na tentativa de mensurar e prever o comportamento do ser humano, o psicólogo arisca-se a reduzir o sujeito a um efeito com causa transcendente, além de sugerir um controle mecânico-linear para a experiência psicológica.
Como já foi sustentado anteriormente, a causa do comportamento é motivada por fatores de mensuração complexa e imanente ao sujeito, na medida em que o meio é percebido e não “fotografado”, ou mesmo “carimbado” no sujeito [41]. Talvez seja até impossível fazer psicologia com uma confiabilidade aceitável pelos padrões das ciências físicas. Valores e humores, pela singularidade de seus motivos, são intransferíveis entre sujeitos e não necessariamente se repetem no mesmo sujeito em contextos aparentemente semelhantes.
A experiência psicológica sempre será única em sua singularidade. Contudo, paradoxalmente, algo se repete na estrutura do sujeito, sugerindo a influência da herança filogenética e da herança cultural, que atravessam todos os seres humanos em articulação permanente com as experiências pessoais e singulares. Não obstante a influência da singularidade, nesses termos, é possível se pensar numa teoria que interprete o comportamento social, embora não se garanta a sua repetição. A complexidade da estrutura humana decorrente da singularidade das suas experiências pessoais distancia os resultados da observação psicológica de uma confiabilidade compatível com a causalidade linear.
Em seu estudo sobre epistemologia, Mario Bunge sugere que o enfoque sistêmico seria o adequado para abordar as ciências sociais. Nessa direção assim se expressa:
O ponto de vista sistêmico domina o pensamento dos cientistas sociais que constroem modelos matemáticos, posto que, como vimos, qualquer modelo matemático de uma coisa complexa é um sistema conceitual que se propõe a captar tanto os componentes como suas relações[42].
Essa colocação aponta para a existência de componentes no sistema, mas, sobretudo, para as relações existentes entre eles. Tais relações são incorporais, isto é, são intangíveis de difícil mensuração, mas de fácil constatação a partir da visibilidade de seus efeitos. O mal estar se manifesta nas relações interpessoais e dela se origina, constituindo-se num círculo de significação do sujeito.[43]
Mais adiante, Bunge (1987) conclui que as pesquisa direcionadas ao sistema social, tal como os das organizações e instituições, devem passar por etapas assim descritas:
De fato, toda vez que se trata de estudar um sistema social, começa-se por individualizar seus componentes, seu meio e sua estrutura. O segundo passo – dado raras vezes – é descobrir ou aventar as variáveis de estado, ainda que sejam as entradas e as saídas do sistema. O terceiro é relacionar essas variáveis entre si. O quarto, simular o modelo num computador ou mesmo testá-lo no próprio sistema. Raras vezes são cumpridas essas quatro etapas da pesquisa. Seja como for, o cientista social estuda sistemas sociais e, com isso, adere ao sistemismo antes que ao individualismo ou ao globalismo[44].
O presente trabalho não pretende perseguir o enfoque de Bunge em todas as suas etapas, mas fazer uma aproximação das questões aventadas como problema, seguindo o modelo de pensamento sugerido pelo autor. As interpretações baseadas no pensamento sistêmico reconhecem que se observa circunstâncias relacionais de momento, não verdades fotografadas e eternizadas em suas essências.
Fazendo-se uma espécie de “ping-pong” entre Bunge e Morin, descobre-se que este último fala com intimidade da estratégia militar, relacionando este fenômeno sociocultural à complexidade:
A complexidade atrai a estratégia. Só a estratégia permite avançar no incerto e no aleatório. A arte da guerra é estratégica porque é uma arte difícil que deve responder não só à incerteza dos movimentos do inimigo, mas também à incerteza sobre o que o inimigo pensa, incluindo o que ele pensa que nós pensamos. A estratégia é a arte de utilizar informações que aparecem na ação, de integrá-las, de formular esquemas de ação e de estar apto para reunir o máximo de certezas para enfrentar a incerteza.[45]
O contexto sociocultural característico das Instituições globalizadas, está mergulhado na incerteza descrita por Morin, tal como ocorre em diferentes outros cenários institucionais. Pensá-lo é uma arte que transcende o enfoque metodológico neo-positivista das ciências físicas, na maioria linear ou imitadora da homeostase dos corpos vivos da natureza, que supõem a possibilidade de um holismo totalizante para a cultura, ao qual chamam equivocadamente de sistema.
O sujeito é complexo e imprevisível, assim como tudo o que ele cria, ou que ele transforma dizendo ser a sua invenção redentora, tal como a cultura na qual está imerso. A moralidade da coisa é uma herança do sentido atribuído pelo sujeito no seu plano de imanência, não existindo uma essência moral transcendente na coisa. Antes do uso pelo sujeito, a coisa é amoral e ahistórica, embora tenha existido em sua extensão antes do seu vislumbre pelo ente.
Ao se observar uma estrutura social, a fim de interpretá-la, é importante que se identifique os seus elementos, as regras de relação entre eles, bem como a dinâmica deste relacionamento. Para descobrir tais regras e entender a dinâmica de relacionamento, é preciso que o analista retire o véu que encobre seus preconceitos e se desfaça de suas transcendências. Só assim, a cultura da Instituição será desvelada e possibilitará um diagnóstico elaborado sobre seu plano de imanência específico.
4 ANTROPOLOGIA
Há necessidade de se repetir indefinidamente que não existe um modelo sócio-cultural ideal a ser descoberto, ou inventado, existe apenas o desvelar parcial de uma realidade intangível em sua imprevisibilidade. O mercado é apenas uma das janelas pelas quais essa realidade humana é observada, pensada e supostamente entendida até a próxima “surpresa aleatória”. Portanto, o que se busca é um entendimento no aqui e no agora, deixando as “certezas futuras” do “eterno presente” para os planos transcendentes, onde os pensadores assolados pela angústia do não saber, perdem-se ao se perguntar sem ouvir a resposta: “de onde vim, para onde vou?”.
Historicamente, a idéia de uma Teoria Geral dos Sistemas surgiu com Ludwig Von Bertalanfy em 1939. Esse pensador atualizou sua abordagem sobre sistemas e publicou uma versão atualizada de seus conceitos em 1969. Desde então, sabe-se que não basta entender cada elemento de um sistema, mas entender o relacionamento entre eles[46]. Mais adiante, o autor sustenta que o paradigma da Teoria Geral dos Sistemas difere e contrasta do paradigma analítico cartesiano clássico, imerso em seu mecanicismo linear onde a causa do fenômeno é proporcional às suas conseqüências[47].
Bertalanfy assim se aproxima do trabalho aqui proposto;
Além disso, a percepção não reflete as coisas reais (qualquer que seja seu status metafísico), e o conhecimento não é uma simples aproximação da “verdade” ou da “realidade”. É uma interação entre aquele que sabe e o saber, depende de uma multiplicidade de fatores biológicos, psicológicos, culturais, lingüísticos, naturais, etc.[48].
Como se pode deduzir, a Teoria dos Sistemas sugere que a Fenomenologia, quando supera a essência do ser, o Estruturalismo na Antropologia e na Lingüística, quando supera a essência transcendental das regras de parentesco e do significado dos significantes, e a Psicanálise, quando singulariza o sentido, isto é, o motivo do comportamento e sua relação com um outro, estão todos eles imersos num plano de imanência, a partir do qual as verdades são intransferíveis, bem como os conceitos que sustentam seus discursos científicos.
Desse modo, não seria viável omitir o argumento antropológico, sem o que a estrutura sistêmica da administração estaria “capenga”. Deslizando a argumentação para a etnologia, ramo da Antropologia, destaca-se Levy-Strauss como o pensador da Antropologia Estrutural. Esse autor localiza seu pensamento no conceito de sistemas ao afirmar que “uma estrutura oferece um caráter de sistema”[49].
Levy-Strauss pesquisou de forma incessante algumas sociedades indígenas ditas primitivas, inclusive no Brasil, desenvolvendo sua abordagem inspirado por Saussure, mestre da Lingüística Estrutural. A Psicanálise encontrou em ambos um terreno fértil para suas abordagens psicológicas, a partir do discurso de Lacan e de sua interpretação do pensamento freudiano e da constituição do sujeito.
Pensando nas interpretações futuras a serem materializadas neste trabalho, é preciso ancorar o pensamento e o discurso em Levy-Strauss, que assim se refere à pesquisa antropológica:
No nível da observação, a regra principal – poder-se-ia dizer a única – é que todos os fatos devem ser exatamente observados e descritos, sem permitir que os preconceitos teóricos alterem sua natureza e sua importância. Esta regra implica em outra, por via de conseqüência: os fatos devem ser estudados em si mesmos (que processos concretos trouxeram-nos à existência?) e também em relação com o conjunto (quer dizer que toda mudança observada num ponto será relacionada às circunstâncias globais de sua aparição)[50].
Preocupado com a cientificidade de sua abordagem, Levy-Strauss referiu-se à possibilidade de haver mensuração em sua etnologia, dividindo as estruturas em lineares e não lineares: Às primeiras, destinou o modelo mecânico, enquanto que, para as segundas, destinou o modelo probabilístico. Em algumas sociedades, é possível aplicar-se o modelo mecânico, contudo, na complexidade do mundo ocidental, no qual as “constantes variam” (regras para o casamento, por exemplo), o modelo adequado seria o probabilístico.[51]
Assim, o pensador mergulhou na incerteza de suas análises, satisfazendo-se em apontar tendências sem confundir-se nas sombras das “cavernas platônicas” de todos nós, sem aprisionar-se na exclusão mútua entre a cópia e o simulacro. Assim, pode chamar sua Antropologia Estrutural de científica, embora tenha sido bastante criticado pelos cientistas neo-positivistas de outros paradigmas.
Freud sofreu o mesmo ataque num período em que “o Círculo de Viena[52] pretendeu estabelecer proposições rigorosas para definir o discurso da ciência em contraposição ao discurso da metafísica”[53]. Contudo, o que se vislumbra é outro paradigma, no qual se evidenciam os incorporais, a manifestar a imanência dos planos de construção da “verdade”, sem os quais o sentido se ofusca e se esvai.
Portanto, sem tais percepções do ser humano e de suas relações, não seria possível interpretar uma Instituição, seja a partir da avaliação de seus resultados, seja a partir da avaliação do desempenho individual, seja a partir do lugar que ocupa no contexto de mercado.
5  MOTIVAÇÃO
Assim, é diante da fragilidade do sujeito e de sua inserção na cultura que se pode pensar as condições de satisfação de suas necessidades básicas. Tal como Freud descreveu, houve um momento na evolução humana, em que o poder absoluto do líder foi substituído por regras de inter-relação combinadas por todos. O líder absoluto e todo poderoso, que fazia valer suas vontades e desejos, foi substituído por aquele que representava as regras combinadas e as fazia valer na comunidade.
No início, a satisfação das necessidades básicas dos sujeitos dependia dos humores do líder absoluto, o que aprisionava a percepção da possibilidade de satisfação numa atitude constantemente defensiva. Essa situação levava os sujeitos a lutarem pela liderança do grupo, a fim de se libertarem do jugo imposto pelo mais forte e criar condições satisfatórias para a satisfação das suas necessidades. Na verdade, ao impor suas regras próprias, o líder garantia para si a percepção de satisfação de suas necessidades pessoais e as sustentava pela força.
Todos invejavam a posição do líder, senhor que era de sua satisfação, e lutavam entre si e contra ele para destroná-lo. Na tentativa de pacificar a inter-relação, os sujeitos se reuniram e criaram regras de convivência, nas quais se definia, por exemplo, que fêmeas estariam disponíveis para os machos, dando origem, dentre outras coisas, a noção de proibição do incesto. Além disso, outras propriedades e responsabilidades surgiram, criando as condições para a estruturação social.
Ao nascer em sua frágil prematuridade, o humano se descobria imerso num ambiente, cuja possibilidade de sobrevivência dependia do amor do outro, que o protegia e lhe ensinava as regras de comportamento, isto é, como a cultura funcionava. Daí para frente, a satisfação de suas necessidades básicas dependiam da aplicação e da obediência a essas regras, que limitavam as possibilidades de satisfação, bem como o modo de satisfazê-las, isto é, o que é bem e o que é mal no processo de satisfação das necessidades.
O que é interessante e pode ser tirado das observações posteriores de Piaget, é que o sujeito parece reproduzir a evolução da humanidade no seu processo de amadurecimento. No início, desconhece o outro da relação igualitária, tendo sua atenção inteiramente dirigida para aqueles que lhe demonstram amor e proteção; depois, descobre o outro da relação igualitária, mas quer lhe impor suas regras pessoais, a fim de garantir a própria satisfação; finalmente, descobre que não haverá relação e sucesso em nenhum empreendimento sem que ambos aceitem o conjunto de regras, que irá balizar tudo o que fizerem, para dominar a hiper-potência da natureza.
Toda vez que está imerso numa cultura desconhecida, cujas regras não lhe são familiares, ou em ambientes cujas regras conhecidas não são obedecidas pelo conjunto da sociedade, o sujeito é dominado pela insegurança de não satisfazer suas necessidades básicas, já que não dispõe de referenciais para agir. Na verdade, existe o motivo para a ação, isto é, alguma tensão interna clamando por satisfação, mas, não existem as condições favoráveis para a satisfação, na medida em que o caminho que separa o bem do mal não está balizado.
Sem esse balizamento, o sujeito perde a perspectiva de satisfação de suas necessidades básicas, já que não discerne entre o modo certo de agir, gerador de bem, de reconhecimento, de amor, e o modo errado de agir, gerador de mal e de castigo, sendo dominado pelo que se convencionou chamar de “desmotivação”. Nesse caso, portanto, a questão não está na falta de motivo para agir, isto é, na falta da tensão interna que motiva e impulsiona o comportamento do sujeito, mas na ausência de condições favoráveis que favoreçam a expectativa de satisfação das necessidades básicas, tal com pontuou Maslow (2001).
Para esse autor, a meta (satisfação da necessidade) será alcançada com a combinação favorável entre causas (impulso interno e reação às forças externas) e condições favoráveis de satisfação. É possível afirmar que, de modo geral, Freud considerava o mesmo enfoque sobre causas e condições de satisfação, apenas definindo outros termos para suas explicações.
Se o olhar for dirigido para uma instituição qualquer, percebe-se que a inexistência de regras formais sobre a condução do trabalho submete, quase sempre, as pessoas aos humores do chefe. Essa talvez seja a condição básica que estimula os conflitos organizacionais, tal como Freud (1911) sugeriu para o que chamou de “horda primeva”. A complexidade dessa situação eleva as tentativas de satisfação ao extremo da insolubilidade. Por outro lado, as regras normatizadas criam uma contenção do conflito e se tornam facilitadoras da harmonia, possibilitando o deslizar das ações em direção a metas bem dimensionadas e sobre trilhos bem definidos e seguros.
O texto é sempre um atrator para o entendimento, diminuindo a possibilidade de interpretações faladas contraditórias acerca da situação de trabalho. Olhar para a mesma coisa, não significa que se esteja vendo o mesmo lado e a mesma serventia para a coisa. É necessário que o texto oriente o ângulo de “visada”, para que haja a possibilidade de convergência entre os sentidos atribuídos a essa coisa. Na verdade, ao permitir tender para a coincidência de sentido, mesmo sem superá-la, o texto diminui a incerteza.
De qualquer forma, é a possibilidade de convergência de sentido que permite o sujeito identificar o que se espera dele na instituição. Essa convergência é o lugar privilegiado, para situar o bem estar e a paz de qualquer comunidade. Além disso, sem ela não será possível identificar se as trajetórias rumam para a satisfação das necessidades da instituição e, ao mesmo tempo, para a satisfação das necessidades básicas do sujeito que trabalha. A percepção dessa coincidência é que alimenta o que se convencionou chamar de motivação.
Assim sendo, para que o sujeito manifeste um comportamento que se identifique como motivado[54], as condições são aquelas que favoreçam a percepção da possibilidade de satisfação, seja pelo sujeito, seja pela instituição. Sob tais condições, o resultado esperado será a geração de um produto que satisfaça ao sujeito e à instituição, tanto no plano subjetivo, quanto no plano objetivo.
No plano objetivo, esse produto, por sua vez, precisa estar bem definido, com seus atributos delineados e, finalmente, que haja uma metodologia de medição e de avaliação dos resultados esperados, sem o que, não será possível identificar objetivamente a existência de um comportamento motivado sustentando a produção. Todas as avaliações e interpretações devem sempre partir da realidade objetiva, mesmo sabendo que a subjetividade estará presente. A aposta é no entendimento do texto comum e sua relação com a situação observada, num contínuo movimento de vai-e-vem durante as potenciais diferenças entre as percepções do real.
Havendo metodologia de medição do comportamento e dos resultados esperados, é permitido ao sujeito distinguir o certo do errado, o resultado esperado daquele inesperado, antes mesmo de ser julgado pelo gerente do seu grupo. A possibilidade de auto-avaliação é um dos caminhos que levam ao comportamento motivado, na medida em que antecipa a avaliação e a reação do líder do grupo, criando uma sensação de controle da situação no avaliado. O espírito se pacifica quando as interpretações do sujeito e a do seu gerente coincidem no essencial.
Uma avaliação fundada apenas na subjetividade do gerente não cria as condições de possibilidade para a satisfação das necessidades do sujeito. Sem a mediação e o balizamento das normas, o contexto pode indicar uma submissão às necessidades deste gerente e, simultaneamente, a frustração das condições necessárias à satisfação do sujeito.
Como já foi demonstrado, sendo o humano um sujeito da linguagem, há necessidade de haver um sentido para o comportamento. Tal sentido passa pela possibilidade dele resultar na satisfação de uma necessidade básica, dele ser uma defesa frente às agressões externas, ou dele ser uma reação frente à frustração das condições de possibilidade de satisfação.
O pensamento sistêmico, que sustenta os conceitos relacionados à administração sistêmica, permite entender o comportamento humano de relacionamento, na medida em que o sentido do comportamento é extraído do sistema de linguagem existente na instituição. Sintaxe e semântica, sincronia e diacronia[55], manifestam-se em cada gesto, em cada palavra, em cada ação objetiva direcionada à materialização do produto da da Instituição.
Assim, a pró-atividade não pode ser apenas um desejo, um objetivo a ser alcançado quando a cultura organizacional permitir. O amadurecimento institucional reproduz o amadurecimento do ser humano. Assim, necessita caminhar de forma segura para o reconhecimento de que, sem a especificação clara dos produtos a serem gerados, dos resultados a serem alcançados e sem regras claras de avaliação do desempenho, a incerteza e a insegurança dominam o ambiente institucional, manifestando o que se convencionou chamar de desmotivação.
A complexidade dos sistemas culturais não é um impedimento para o amadurecimento do sistema de gestão. Ao contrário, é sua abertura para as forças externas, que vence a tendência ao imobilismo conservador do “status quo”; possibilita a mudança em direção à substituição do poder absoluto, que frustra a liberdade de adaptação do sistema, para o domínio da lei e da democracia, que ajustam continuamente o sistema à conjuntura e ao contexto.
É o salto do ser para o vir-a-ser, do ser para o modo de ser, do ser para a possibilidade de ser , do ser para o talvez do insondável e irrespondível...
No próximo artigo, abordaremos os fundamentos da Avaliação do Desempenho.



[1] CHIAVENATO, I. Gestão de pessoas. 2ed. Rio de Janeiro: Campus, 2005. prefácio.
[2] MASLOW, A. Maslow no gerenciamento. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2001. p. 276.
[3] MASLOW, op. cit. p.251-260.
[4] MASLOW, op. cit. p.260.
[5] MASLOW, op. cit. p 270.
[6]MASLOW, op. cit. p 271.
[7] MASLOW, op. cit. p 266.
[8] FREUD, S. Lo inconciente (1915). In: Sigmund Freud Obras completas v. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v. p. 157 e seguintes.
[9] FREUD, S. Introducción del narcisismo (1914). In: Sigmund Freud Obras completas v. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v,. p.65.
[10] FREUD, El malestar en la cultura (1930). In: Sigmund Freud Obras completas v. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v. p.88.
[11] ibid, p.88.
[12] FREUD, S. Tótem y tabu (1913). In: Sigmund Freud Obras completas v.XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v.op. cit., v. XIII, p.11 e seguintes.
[13] FREUD, op. cit.,vol XXI, p.85.
[14] FREUD, op.cit. v. XXI, p.120.
[15] FREUD. Inhibición, síntoma y angustia. In: Sigmund Freud Obras completas v. XX. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v. p. 145.
[16] RAPPAPORT, C, R; FIORI, W, R; DAVIS, C. Psicologia do desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1982, 4v.
[17] RAPPAPORT e all, op. cit., v. IV p.80.
[18] FREUD, op. cit. v. XXI, p.94.
[19] FREUD, op. cit. v. XXI p. 100.
[20] FREUD, op.cit. v. XXI p. 120.
[21] RAPPAPORT e all, op. cit. p. 81 e 82.
[22] RAPPAPORT e all, op. cit. p. 84.
[23] FREUD, S. La negación (1925). In: Sigmund Freud Obras completas v. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, 24v. p.254 e 255.
[24] DELEUZE, G. GUATARRI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. p. 41.
[25] Ibid, 1993, p. 41.
[26] DELEUZE, op. cit. p. 60.
[27] DELEUZE, op. cit. p. 67.
[28] DELEUZE, op. cit. p.66.
[29] DELEUZE, op. cit. p. 98.
[30] HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. 2v,. v. I, p. 38-41.
[31]ANDRADE, R, J. A Cultura: o homem como ser no mundo. In: HÜHNE, L.A (Org). Fazer Filosofia. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1994, p. 30-74. p. 49
[32] HEIDEGER, 1988, v.I, p.30-41.
[33] Dasein significa “ser no mundo”, o que é diferente de ser como essência.
[34] ANDRADE, op. cit. p.36.
[35] ANDRADE, op. cit. p. 39.
[36] ANDRADE, op. cit. p. 39.
[37] MARCONDES, D. Iniciação à história da Filosofia. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 162.
[38] HEIDEGGER, op. cit. v I, p.143-148.
[39]MORIN, E. Ciência com consciência. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.176.
[40] MORIN, op. cit., p. 185.
[41] FREUD, op. cit. v. XIX, p.254.
[42] BUNGE, M. Epistemologia: curso de atualização. 2ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. p. 181.
[43] FREUD, op. cit. vol XXI, p. 110
[44] BUNGE, op. cit. p. 180.
[45] MORIN, op. cit., p. 101 e 192.
[46] BERTALANFY, L. General System Theory. New York: George Braziller, 1969. p. XIX.
[47] BERTALANFY, op. cit., p XXI.
[48] BERTALANFY, op. cit., p. XXII.
[49] LEVY-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 316.
[50] LEVY-STRAUSS, op. cit. p. 317.
[51] LEVY-STRAUSS, op. cit., p. 321.
[52] Defendia as proposições verificáveis tidas como científicas. Seu líder, Rudolf Carnap, lutou pelo que se convencionou chamar de neo-positivismo. Este movimento começou na década de vinte e se contrapôs a tudo que considerava proposições não verificáveis.
[53] BIRMAN, J. Psicanálise, Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p. 18.
[54] Sabe-se que todo comportamento é motivado, mesmo na ausência de movimentos e no silêncio de um sujeito. No argumento aqui apresentado, o comportamento motivado é aquele que se manifesta positivamente em relação às avaliações de desempenho e no qual o sujeito demonstra iniciativa e criatividade na consecução de seus objetivos.
[55] SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. 26 ed. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 107-116.

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