I - A filósofa Viviane Mosé, em entrevista
ao jornal O Globo de 09/09/2013, sugere que o atual sistema educacional
brasileiro é castrador, na medida em que “corta
a cabeça dos líderes e inteligentes”. Chega a dizer que “nossa melhor educação elimina nossas
lideranças”. Observando o conjunto de seus argumentos, aqui e ali, talvez,
seja possível contestar alguma afirmação. Contudo, sua pesquisa sobre o assunto
consta num livro – A escola e os desafios
contemporâneos - ainda fora das prateleiras das livrarias. Portanto, sem
que saibamos sobre suas fontes de pesquisa, escolhemos algumas passagens
incentivadoras do debate.
Numa confluência com os
argumentos apresentados pelo nosso grupo de estudos, a filósofa sugere que “este novo modelo de sociedade em rede abre
a perspectiva para um raciocínio complexo, que aceita a contradição”. Na
minha leitura, o novo modelo aceita diferentes argumentos, contraditórios ou
não, oriundos de experiências pessoais diversas, estimulando o aparecer das
diferenças.
Alguns filósofos poderiam
contestar, afirmando que este enfoque pode eliminar “o princípio da não
contradição”, podendo levar a um relativismo absoluto, desconstruindo valores,
que sustentam as relações sociais entre humanos. Outros, porém, poderiam dizer
que o relativismo, ai exposto, existe na noção de complexidade e aceitação da
contradição, apenas apontando para uma realidade. Realidade objetiva que não
pode ser disfarçada pelo receio de se perder a perspectiva sobre os valores intangíveis
e definidores do bem e do mal. A Internet e as Redes Sociais são uma realidade
objetiva, a provocar nossa subjetividade e interpretação sobre seus efeitos no
universo humano, não um mal do século XXI.
Faria sentido dizer-se que
matéria, energia e onda, sendo aspectos da natureza da realidade quântica, na
qual o ser e o não ser não se contradizem, sugeriria que a complexidade e o
relativismo ai expresso levaria à inexistência de contradição entre o bem e o
mal? Que este relativismo, por exemplo, poderia “autorizar” o incesto em nossa sociedade?
É evidente que a natureza do bem e do mal é de outra ordem em sua
intangibilidade, na qual existe, de fato, o princípio da não contradição entre
os conceitos de bem e de mal. A Antropologia esmiúça esta questão em suas
observações sobre diferentes sociedades, culturas e religiões.
Claramente, a complexidade aponta
para a impossibilidade de universalização de conceitos, isto é, afirma que
estamos diante de algumas singularidades, onde não se pode transferir leis,
normas e regras de uma para outra, sob pena de obscurecermos a visão da
realidade em cada singularidade. Ou seja, as verdades de uma singularidade não
servem para exemplificar o princípio da não contradição em outra singularidade.
Isto quer dizer que o saber enciclopédico, em sua postura transcendente e desejosa
de recobrir todas as “verdades”, sucumbe diante do saber disperso e imanente a
cada singularidade. Seria esta, então, a natureza da complexidade e do
relativismo.
O saber judaico-cristão, por
exemplo, não conseguirá interpretar o saber islâmico, ou o saber oriental
budista, se não se livrar de um eventual preconceito e “calçar as sandálias do
outro”. Ai está outra perspectiva da natureza da complexidade e do relativismo,
a desfazer verdades universais e a valorizar a singularidade dos povos e das
pessoas. Paradoxalmente, a complexidade afirma e comprova o conceito universal
de liberdade e de respeito ao outro em suas escolhas, na medida em que desfaz a
possibilidade de aprisiona-lo à “única” verdade, estimulando a livre escolha,
estimulando o livre arbítrio.
A complexidade e o relativismo muitas
vezes não são notados, mesmo estando ao redor do ser humano. A impossibilidade
de existência de uma teoria única sempre se dispersou sobre as ciências
humanas, nas quais diferentes teóricos discutem princípios norteadores da
interpretação da realidade. Assim, o estruturalismo, por exemplo, serve como
princípio para a Linguística, Antropologia, Psicologia, etc, contrapondo-se aos
que defendem a possibilidade de essência, de linearidade entre causa e efeito, no
que for produzido pela natureza humana. Estes temem a não contradição entre o
bem e o mal, princípios norteadores das ações humanas.
A existência, ou não, de uma
essência, definidora das coisas, é uma discussão que ultrapassa 2000 anos,
pendulando entre a genialidade de Parmênides, sugerindo que algo sempre permanece
identificando a coisa, e a inquietude de Heráclito, a afirmar que “as águas de um rio não passam duas vezes
sob a mesma ponte”. Heráclito dizia que o sentido da coisa estaria no
confronto entre os contrários, inspirando a dialética de Hegel, isto é, “um senhor só tem sentido na existência de
um escravo, e vice versa”, um dando sentido ao outro.
Dois mil e quinhentos anos
depois daqueles gregos, curiosamente, a Física Quântica sugere que, no processo
de transformação da realidade, algo permanece, como, por exemplo, o átomo de
hidrogênio com seu núcleo e seu elétron, quando compõe a molécula de água com o
Oxigênio, ou esteja livre, mas que não temos certeza como a coisa toda funciona.
Sem perder de vista a sabedoria
despertada pela ciência contemporânea, o Estruturalismo funda o Pensamento Sistêmico,
no qual a relação entre os elementos do sistema seria o foco de interesse do
pesquisador, embora não se possa perder de vista a natureza de cada um de seus
elementos. A molécula de água é fruto da relação entre o hidrogênio e do
oxigênio, embora cada elemento possa existir livre na natureza, segundo certas
circunstâncias, isto é, segundo a relação com outros elementos naturais, os
quais possibilitam suas existências aparentemente isoladas. Assim, para o hidrogênio
existir “isoladamente”, algumas condições, ou algumas relações das quais
participe, precisam estar presentes, a fim de lhe dar a identidade de
hidrogênio. Afinal, o quê, de fato, permanece?
Na Linguística Estrutural, sugere-se
que um significante adquire significado na relação com outro significante, isto
é, que, isoladamente, o significante não possui significado, não retrata a
intenção de quem fala. Por exemplo, se alguém diz apenas “manga”, o significado
deslizará pelas cabeças dos ouvintes, entre uma fruta, parte de uma camisa, ou
paletó, encaixe de uma lâmpada, etc. Este deslizar não ilumina a intenção de
quem fala, cuja intenção será revelada pela estrutura do seu discurso.
Na História, reconhece-se que, há
mil anos, o Condado Portucalense era uma região parte de Castela. Naquele
Condado, falava-se um dialeto derivado do castelhano. No contexto da luta para
libertar a Península Ibérica do domínio mourisco, o Condado libertou-se de
Castela, passando a se chamar Portugal e, sua língua oficial o português. Mesmo
sendo língua derivada do castelhano, ou com enorme influência dele, o
significante “esquisito”, por exemplo, possui sentido contraditório entre o
português e o castelhano. Sem contextualizar este significante numa das duas
línguas, nunca saberemos a intenção de quem fala português, ou castelhano.
Assim é quando se tem qualquer
informação isolada. Sem articulação com outras informações, não será possível
produzir-se um sentido, um conteúdo, isto é, um conhecimento sobre a realidade,
seja material, seja humana.
A atualidade está ávida por quem
produz conteúdo, produz conhecimento, dando pouca importância à memória
enciclopédica, que não sabe como identificar, atualizar e articular as
informações contidas na memória externa existente na Internet e nas Redes
Sociais. Repetindo, sem saber como articular as informações, sem saber como identificá-las
e contextualizá-las, o sentido da realidade observada permanecerá obscurecido
para quem decide sobre o “caminho” a tomar.
O Pensamento Sistêmico sugere
que a realidade realiza-se como linguagem, isto é, tal como as cadeias de
significantes a produzir significados no “atrito” entre significantes. Assim,
as informações sobre os fatos os tornam “verdade” ao se unirem em “atrito”,
projetando-se sobre outros fatos do mesmo contexto. Este seria o “mecanismo” a
produzir conteúdo revelando a realidade, a produzir conhecimento sobre a
realidade. Esta é a natureza do pensamento sistêmico, inspirada no
Estruturalismo.
Deste modo de pensar, por
exemplo, derivou-se o Gerenciamento por Processos, que nada mais são do que
articulações entre atividades dispersas entre seções e setores, dialética e
“heguelianamente” falando, uma dando sentido a outra, sendo “atritos” a
produzir um resultado, um sentido para o processo. Um pensador sistêmico
prestaria atenção no “atrito” entre atividades, seções e setores, sem esquecer
que a “corrente se rompe no elo mais fraco”, perdendo-se assim o sentido, o
resultado esperado.
A complexidade se insere no
estruturalismo quando se percebe a possibilidade de inúmeras articulações entre
significantes, entre os elementos de um processo, ou entre os elementos de um sistema
dinâmico, como o social, no qual as realidades, impulsionadas pela tecnologia, transformam-se
cada vez mais rapidamente, produzindo sentidos diferentes a cada olhar do
pesquisador. Sugere que nosso olhar transformaria a realidade, parecendo que
nossa ação de observar teria sido provocadora da mudança e não que estivéssemos
testemunhando mutações da realidade. Tudo indica que esta última posição
aproxima-se da verdade, embora não se tenha certeza.
Do ponto de vista da Psicologia,
imaginar que a força de nossa observação alteraria a realidade, poderia ser uma
interpretação verdadeira num mundo medieval, que concebesse a realidade
imutável em si, só sendo alterada a partir de influência externa poderosa,
milagrosa. O que nossa observação provoca talvez seja uma alteração de sentido
para a realidade, na medida em que articulamos mais e mais informações, na
medida em que a tecnologia ilumina mais e mais as sombras antes não reveladas,
mostrando-nos o que era desconhecido, apenas imaginado. Como, por exemplo, o
vazio entre prótons e elétrons e o princípio da incerteza, o princípio da não localidade,
o Éter preenchendo o nada, hoje chamado de Energia Negra, de Anti-matéria, ou mesmo
a partícula Bóson, antes imaginada, teorizada, hoje revelada pela tecnologia
dos aceleradores de matéria. Partícula que, aparentemente, deu início a todo
universo tangível e até a nós mesmos.
II - Tudo indica que o modo de pensar
descrito até aqui, pode servir de bússola a direcionar as transformações do
processo educacional, libertando-o das amarras castradoras da manifestação de
liderança. Se quem aprende está diante das “amarras” de sentido outorgado pelo
poder de quem ensina, a criatividade e a iniciativa ficarão amordaçadas,
silenciando a inteligência, a possibilidade de produção de novos sentidos para
a realidade de quem aprende. A produção de sentido é como se disséssemos que “interessa saber o que se é capaz de fazer
com o que se sabe”, com as informações pesquisadas. O processo atual
estaciona a avaliação no se o aluno memorizou o sentido outorgado pelo professor.
Não será fácil superar o orgulho
e a vaidade de quem pensa saber, de quem “repete o mundo medieval imutável” em
suas afirmações, de quem não incorporou o espírito do pesquisador e descobriu
que, se soubesse, não seria necessário pesquisar. Destronar esta eventual
onipotência de quem ensina alguma coisa, usualmente a encobrir o medo de perder
o controle sobre quem aprende, será empecilho poderoso a ser superado nesta
trajetória de transformação do processo educacional.
Do ponto de vista do Pensamento
Sistêmico, a tecnologia atual oferece soluções e, também, desafios enormes para
a Educação, na justa medida da complexidade e do relativismo que provoca. É
geral a percepção de que a tecnologia digital, a Internet, a banda larga, a
velocidade de processamento e a capacidade de armazenamento de informação vêm
transformando as relações entre pessoas, empresas e países. Este processo de
transformação incide sobre a Educação quando mexe e remexe com a subjetividade
de quem aprende e de quem ensina.
A questão não está na
possibilidade, quase infinita, de se navegar na Internet, pesquisar no Google,
ou trocar ideias numa vídeo conferência. Mesmo aqueles em funções aparentemente
sem importância já o fazem com intensidade surpreendente, o mesmo ocorrendo com
os sem função objetiva, como as crianças. O foco de transformação real do
processo educacional, a adequar-se nesta realidade sistêmica e complexa, parece
estar na existência de uma memória externa imensa e de fácil e rápido acesso,
capaz de tamponar as lacunas da memória humana, como esclarece a filósofa
Viviane Sodré em sua entrevista.
O fato real para a Educação é
que há possibilidade de acesso à memória externa, na qual estão as bibliotecas
virtuais, os jornais e as revistas semanais dos últimos dez anos, teses de
doutorado e dissertações de mestrado em servidores de inúmeras Universidades acessíveis
pelos cadastrados, isto é, não há necessidade de se saber “tudo”; já que o não
sabido encontra-se a um “toque do indicador” no tablete ou no celular. Diante
disto tudo, faz-se a pergunta insistente sobre o quê deve ser ensinado e o quê
deve ser aprendido: transmite-se um conteúdo a ser memorizado, ou ensina-se a pesquisar
e a produzir conteúdos?
Do ponto de vista da psicologia,
a subjetividade pode ser entendida a partir de suas posições ativa e passiva
diante da realidade. É evidente que, num terremoto, a situação real e subjetiva
é de inteira passividade; também o é quando se é submetido ao poder das armas.
Contudo, quando a posição subjetiva passiva é adotada diante de uma realidade
imaginada, irreal, fruto de um não saber do quê se trata, de uma expectativa
negativa quanto aos resultados da ação possível, o sujeito parece paralisado
sem razão objetiva. É como se permanecesse criança, ou adolescente, paralisado
pela dúvida de como funciona o mundo e sobre o quê fazer.
O não saber, nem sempre,
paralisa as crianças, ou adolescentes, os quais, eventualmente, buscam a
resposta em alguém que, supostamente, detém o saber suficiente. Para a
Psicologia da Educação, embora tenha agido na busca de uma solução possível,
situou-se passivamente diante de um saber suposto pela imaginação de quem não
sabe e pergunta. Suposto saber por ser imaginado por quem pergunta, por ser um
saber incapaz de recobrir a realidade em permanente transformação, por deter
conteúdo defasado em relação às mutações atuais da realidade.
Ninguém, absolutamente ninguém,
possui memória interna capaz de igualar a memória, que se espalha pelo universo
da Internet. Mesmo esta, não alcança uma espécie de conhecimento universal,
capaz de significar as realidades singulares, tal como abordamos acima. A subjetividade
ativa identifica e escolhe, contextualiza produzindo conteúdo, construindo
significados.
Contudo, desafiando o processo
educacional, desafiando o modo de ensinar, esta imensa memória está lá,
esperando ser acessada. Este fato altera completamente a perspectiva
educacional tradicional, ao possibilitar a passividade subjetiva de quem
pergunta a alguém, que supostamente sabe a resposta, transitar para uma
subjetividade ativa de quem pesquisa a possibilidade de resposta na memória externa
disponível.
Há tanta informação neste
universo digital que, do ponto de vista da subjetividade, ela pode induzir a
uma posição passiva diante da massa desta realidade. Talvez, agora, o centro de
gravidade do aprendizado esteja nesta transição entre a passividade e a
atividade subjetiva do pesquisador. Numa posição subjetiva ativa, o papel de
quem pesquisa seria identificar e selecionar informação, encontrar uma
“sintaxe” que amarre as informações reconhecidas na memória externa, produzindo
um sentido para determinado contexto. Este sentido, como dito acima, é chamado
de conhecimento de uma singularidade, de uma arrumação daquilo que se espalha
sobre um plano de imanência, não sobre todos ou qualquer plano de forma
transcendente, poderiam dizer Deleuze e Guatarri ao conversar sobre Filosofia.
Relembrando, Viviane Mosé afirma
que, na Educação, é preciso priorizar a figura do pesquisador, transformando-se
a realidade anterior focada na necessidade de memorizar conteúdos. Hoje,
segundo a filósofa, “se o conteúdo não é
lembrado, simplesmente se acessa a memória externa pelo celular”. Assim,
nossa memória interna não seria mais um banco de dados memorizados, mas
possuidora de “mecanismos de evocação” via tecnologia digital e Internet.
Talvez seja esta a verdadeira
revolução da Educação a se avizinhar rapidamente. A realidade tecnológica está
invadindo todos os momentos dos sujeitos a “clicar” no celular; do outro lado
da mesa do restaurante, há um olhar real a observar o parceiro dialogando com
alguém virtualmente presente no celular; em casa, o adolescente diverte-se com
jogos eletrônicos “on line”, numa relação virtual com amigos reais, ou com o
software do jogo; a criança escolhe o DVD e assiste seu desenho preferido,
dispensando as histórias contadas pelo adulto. Tudo parece acontecer como se
houvesse um esgarçamento, quase rompimento, das relações reais e carnais entre
pessoas.
As brincadeiras de quintal e de
rua, agora, estão acontecendo diante da tela do tablet, ou do laptop. No
entanto, as crianças e adolescentes continuam jogando futebol, vôlei, tênis,
fazendo atletismo, indo aos estádios assistir o Campeonato Nacional, a Copa do
Mundo e as Olimpíadas, encontrando no esporte um modo de relação competitivo
entre as pessoas com regras determinadas, juízes e julgamentos de “cartões
vermelhos”. Nada mais educativo! Portanto, de nada adianta demonizar a
“realidade digital”, afirmando que a relação entre pessoas está perdida. Não
está!
Nesta perspectiva, a figura de
quem ensina começa a ser modificada, já que é o pesquisador quem aprende a
produzir conteúdos, não os recebendo mais prontos a serem memorizados. De
portador de um suposto saber, quem ensina parece se transformar em um
pesquisador do não sabido, que facilita o processo de “evocação de memória” de
quem aprende e ainda é neófito nesta conquista. A amarração, a definição de
sentido, a produção do conteúdo cabe ao aluno, não ao professor, que apenas
ajuda nesta tarefa, alertando sobre as “curvas perigosas e o excesso de
velocidade”.
No modelo atual, o professor
produz o conteúdo, fala sobre este conteúdo, organiza uma apostilha e avalia se
o aluno “apreendeu” o conhecimento lá contido. A cada dia, a mensagem de
passividade é transmitida, impedindo que a iniciativa e a inteligência na
amarração de um sentido para a realidade, mantenham-se adormecidas na alma de
quem aprende.
O paradoxo do modelo atual é que
o conteúdo transmitido pelo professor estará obsoleto no momento em que é
ensinado, tamanha é a evolução e transformação da realidade, produzindo novas
informações provocadoras de novos conhecimentos. Tudo disponível na referida memória
externa, na forma de e-book, artigos científicos ou não, reportagens, textos os
mais variados a interpretar janelas de realidade. A cada nova tecnologia a
analisar as sombras do começo, ciências como a História e a Arqueologia estão
mudando a visão do passado e a significação do presente. Memorizar o que
existia antes do novo será como perder a possibilidade de descobrir o fio que
nos liga ao passado, sugerindo um futuro possível.
Agora, qual seria o impacto dos
novos conhecimentos, a desorganizar os antigos numa revolução de conteúdos, na
expectativa de futuro de quem ensina e de quem aprende?
A principal característica da
liderança está numa posição subjetiva ativa diante da realidade, está na
possibilidade de suportar que não sabe e agir como se soubesse, está na
confiança e no valor de suas pesquisas, entendimentos e intuições. Como as
rápidas transformações e a complexidade da realidade impedem que o saber “mutante”
do passado e do presente sirvam como orientação segura para o futuro, estamos
diante da necessidade do Líder, sistematicamente, recolher informações,
arrumá-las num contexto dando-lhes sentido, produzindo novos conhecimentos.
Conhecimentos que durarão pouco tempo como “verdade”, mas que podem sugerir a
trajetória da realidade em direção ao desconhecido a ser pesquisado mais
adiante.
Ai está a verdadeira natureza da
Liderança! Ser subjetivamente ativa diante da realidade não estruturada! Fato que
aflige Políticos, CEO’s e os Comandantes Militares. Posição subjetivamente
ativa a ser aprendida desde cedo, desde o começo e sempre apoiada em princípios
norteadores do pensamento, como, por exemplo, o pensamento sistêmico, a
complexidade e a incerteza sobre as mutações da realidade. A cada passo, os
“mecanismos” de evocação da memória serão ensinados, encorajando a quem aprende
a produzir conteúdo, sempre constatando que este conteúdo é uma singularidade,
que outros conteúdos assim o serão sempre que produzidos.
Num sistema dinâmico, quando se
altera um de seus componentes, retira-se, ou se agrega um componente novo,
altera-se a relação entre os elementos, surgindo um novo sistema a ser
estudado, desconhecido em suas características e trajetória. Assim será com a
Internet e as Redes sociais inseridas no sistema educacional.
III - A questão que agora se coloca é
sobre a formação de quem ensina, de quem será aquele que apontará para o modo
de ser subjetivamente ativo do pesquisador. Alguns dirão que nem todos chegarão
lá e que, para estes, deve-se transmitir conhecimento previamente elaborado;
que muitos terão atividades estruturadas ou semiestruturadas, cuja vida será
passiva diante da organização social, a qual pertencerem.
Poderia ser verdade se o
conhecimento de hoje servisse para o amanhã das realidades estruturadas. Artesãos,
comerciantes, mecânicos, pintores ou operários, todos estão submetidos ao
impacto da tecnologia em suas realidades estruturadas, ou semiestruturadas. O Líder
descobrirá sempre um novo modo de fazer a mesma coisa; enquanto isso, os
subjetivamente passivos estarão esperando que algo os obrigue a mudar. Assim, a
parcela da realidade chamada de estruturada será uma hoje e outra diferente
amanhã. Se quem ensina e quem aprende não dispuserem de um “mecanismo” de
atualização do conhecimento, qualquer realidade, estruturada ou não, será uma
incógnita passivamente observada.
Tudo indica que o que se ensina
é o “mecanismo”, a habilidade, o modo de ser próprio dos pesquisadores, que
sabem que não sabem, por terem memorizado apenas o que já foi um dia, não o que
é e, provavelmente, será. Se soubéssemos, para quê pesquisar? – diria eu ao fim
de meu Mestrado.
Portanto, para qualquer
realidade, estruturada ou não, a sobrevivência está no modo de ser do
pesquisador, não naquele que pensa portar o conhecimento em sua memória do
passado, em sua experiência sobre o que já foi. Diante das possibilidades
tecnológicas atuais e futuras, o foco será ensinar que não se sabe, com
certeza, como será o que ainda não é, ou mesmo sobre o que esteja acontecendo
no aqui e no agora, antes de amarrar informações atualizadas, antes de produzir
um sentido para a trajetória da realidade em direção ao futuro desconhecido.
Informações dispersas na memória externa, submetidas, a cada momento de decisão
a princípios e a modo de pensar durante a sua evocação. Princípios e modo de
pensar a ser ensinado?
IV - Há quinze anos, talvez um pouco
mais, coordenei um grupo de estudos sobre a obra freudiana, composto de
psicoterapeutas especializados em outras abordagens da Psicologia, como, por
exemplo, a Teoria Cognitivista e a Teoria Corporal de Reich. A obra freudiana espalha-se
por vinte e três volumes, recheados de artigos, breves e longos, produzidos por
Freud durante cerca de cinquenta anos de atividade clínica e teórica. Complexidade
que desafia seus pesquisadores. Há um vigésimo quarto volume, que orienta a
pesquisa em toda obra.
Não é fácil fazer entender que
há, pelo menos, três Freud’s diferentes ao longo daqueles cinquenta anos. Em
cada fase, novas experiências induziam Freud a pensar a neurose, a psicose e a
perversão de modo diferente, a introduzir e modificar conceitos sobre suas
causas, bem como seu consequente tratamento. Toda estrutura teórica funciona
como um sistema, na qual a modificação de um conceito, ou a introdução de um
novo, a modifica profundamente. Assim ocorreu com Freud por, pelo menos, três
vezes.
Naquele tempo do grupo de
estudos, a obra freudiana foi lançada em um CD de forma digitalizada. O sistema
de pesquisa, nele existente, facilitava e acelerava a pesquisa, embora fosse um
tanto primitivo, se comparado aos recursos atuais. Curiosamente, esta memória
externa aumentou a capacidade de minha memória interna, permitindo que fizesse
referência a artigos, ano de publicação, volume no qual foi publicado, com
grande facilidade e precisão. Tornou-se muito fácil encontrar no texto em papel
o que desejava sinalizar a cerca das alterações na estrutura teórica da
psicanálise freudiana. Talvez este seja um efeito colateral benéfico, para quem
acessa a memória externa digitalizada.
Há uns seis ou sete anos,
matriculei-me num curso da FGV-RJ realizado pela Internet. Evidentemente, com
uma Internet de 256 K, a experiência não foi como seria hoje com a banda larga
de 15 Mega, que me ajuda a navegar pela Internet. No entanto, naquele tempo,
foi suficiente. O conteúdo do curso era sobre TI para Executivos, sugerindo as
dificuldades de transição para o novo em diferentes empresas. Nele, estudamos
as dificuldades de transição entre a venda por catálogo e a pela Internet, as
dificuldades de suporte logístico pelas empresas fabricantes de peças de
aviação, as dificuldades de transição dos Supermercados para o novo modelo de
controle de estoque e reposição das prateleiras, e muitos outros que me
alertaram para o que viria em pouco tempo na Educação.
Nas duas experiências, percebi
que, de um lado, havia a memória digital facilitando tremendamente minhas
pesquisas e transmissão para o grupo de estudos, embora eu fosse apenas um
repassador de conteúdos previamente elaborados; e, de outro, multinacionais de
ponta tendo dificuldade em apresentar seus produtos pela Internet. Com os
catálogos, a ideia era facilitar a pesquisa dos clientes, orientando-os para a
loja mais perto.
Naquele tempo, o marketing ainda
estava aprisionado ao modelo que, supostamente, influiria nas escolhas dos
clientes. Com a Internet, as compras passaram a ser realizadas “on line”, sem
que o cliente se deslocasse a alguma loja do grupo. Este fato mostrou que o
desejo do cliente estaria acima do eventual convencimento da propaganda. A
ideia passou a ser identificar o desejo do cliente e sugerir onde poderia
satisfazê-lo. O momento caracterizou-se pela evolução entre mostrar a qualidade
dos produtos, para a confiabilidade destes produtos, segundo o desejo
manifestado pelos clientes.
Em 2000, as Normas ISO apontavam
para o foco no cliente, nas necessidades e desejos dos clientes, isto é, pessoas
e empresas pesquisadoras e compradoras de produtos, escolheriam e comprariam
“on line e on time” pela Internet. Hoje, espalha-se pela rede inúmeros
softwares de busca do melhor e mais barato, comprovando o que as Normas ISO
diziam há quase quinze anos. Claramente, o centro de gravidade deslocou-se do
produtor, que seduzia a compra, para o consumidor, que é quem escolhe o que
comprar na “solidão” da Internet. Mais e mais, esta realidade vem substituindo
a que “pedia” para o cliente se deslocar até a loja, até o banco, para realizar
seu desejo. Curiosamente, ainda há quem imagine que a mídia convence a comprar
o que não se quer, como se fosse necessário atrair o cliente até a loja, até o
banco. Bem, sempre haverá alguma posição subjetiva passiva esperando por alguém
que lhe diga o quê fazer. Nada que uma boa psicoterapia não resolva.
Estas são experiências que me
alertaram, que me descortinaram um horizonte, no qual a filósofa Viviane Mosé
voa e veleja com despendimento.
A mesma dificuldade encontrada
pelas empresas na transição entre a venda por catálogo e aquela pela Internet,
parece incidir na Pedagogia na transição entre o Ensino à Distância (EAD), no
qual se envia o conteúdo em papel pelo correio, e o ensino pela Internet, cuja
memória externa está digitalizada e acessível “on line on time”. Como já disse
antes, a informação desejada encontra-se a um toque de um dedo na tela do
tablet, ou do celular.
Há inúmeros softwares que
facilitam a relação ensino-aprendizagem pela Internet, todos possuidores de
inúmeros recursos de busca e pesquisa, salas de chat, vídeo conferência e tudo
o mais que a tecnologia atual pode oferecer. Estes softwares são chamados de
Learning Management System (LMS), sendo utilizados por alguns cursos em
Universidades no Brasil e pelo mundo a fora. O LMS induz à discussão pedagógica
se determinado ensino deva ser realizado de forma presencial, ou se a sua
transmissão pela Internet será suficiente.
Neste caso, a afirmação amadora
de que a Internet isola as pessoas, impede o relacionamento interpessoal
direto, sucumbirá diante das possibilidades tecnológicas. É só observar as
pessoas, adultos, adolescentes e crianças, jogando e se comunicando pelo
celular e tablet, parecendo isoladas em si mesmo, mas, verdadeiramente, abertas
para o mundo novo a conectar pessoas situadas em lugares objetivamente
distantes.
Hoje, a discussão profícua sobre
o processo educacional estaria no argumento se haveria necessidade presencial
de quem aprende, ou não. Assim, em certos momentos do ensino-aprendizagem, haveria
presença real de quem ensina e de quem aprende, ou apenas daqueles que aprendem
e, em outros momentos, a presença virtual (pela Internet), via laptop, celular
e tablet, seria suficiente. De qualquer forma, em ambas a situações, aqueles
que aprendem e aqueles que ensinam estariam presentes, seja numa ligação “olho
no olho” material, seja numa ligação “olho no olho” virtual (pela Internet). Será
um passo da Pedagogia difícil de prever quais obstáculos irão retardá-lo.
Como tudo isto incidirá sobre a
hierarquia das empresas, das Universidades, ou a hierarquia Militar, ainda não
se pode adiantar. Neste universo novo, o saber desloca-se de uma verticalidade
e outorgado de cima, sendo transferido por alguma autoridade de poder hierárquico
ou apenas no assunto, para ser horizontal e dominado pela Internet e as Redes
Sociais.
Mesmo nesta realidade
tecnológica, a resistência à mudança estará presente no medo de perder o
controle e a autoridade sobre os conteúdos, tal como sempre ocorreu ao longo do
tempo, em todas as mudanças provocadas pela tecnologia, desde a aplicação da
roda na satisfação das necessidades humanas. Afinal, não foi fácil convencer o
Ocidente de que a Terra girava em torno do Sol, coisa que já se sabia, em
outras paragens, alguns séculos antes de Galileu.
V - Finalizando, se as transformações
da realidade são velozes e permanentes, a transformação é o quê, de fato,
permanece. Este dinamismo impede que se desenvolva uma interpretação capaz de
recobrir toda a realidade. Ao se interpretar uma realidade, de alguém ou de uma
sociedade, por exemplo, sempre haverá inúmeras lacunas, mesmo com o “mecanismo”
de evocação da memória externa. Assim, é possível dizer-se que o limite é entender
a provável trajetória de um sistema social, ou se alguém poderá reagir
passivamente ou ativamente diante de sua realidade, por exemplo, sem que se
saiba onde a coisa toda vai chegar. Em qualquer chegada imaginada, lá será
apenas um ponto provável de passagem do sistema durante o eterno movimento em
direção ao desconhecido.
Assim ocorre em cada sistema dinâmico
pesquisado, em qualquer sistema humano, sem que se possa aprender com um deles
e transferir o conhecimento para outro, a fim de entendê-lo. Os sistemas são
singularidades com “verdades”, resultantes de seus “atritos internos” e da
relação de “atrito” com outros sistemas, produzindo efeitos de significado interno,
ou abrangente, mas sempre momentâneo. É como se o “atrito” entre verdades
produzisse novas verdades mais abrangentes, que “atritassem” com outras
verdades mais abrangentes e o dinamismo da natureza material, humana ou social
seguisse produzindo sempre e cada vez mais novas verdades a modificar os
sistemas.
Se a alma de quem aprende e de
quem ensina não for aquela do pesquisador movido pelo pensamento sistêmico e
pela complexidade, a volatilidade das informações, a realidade da falta de referências
estáveis, a inexistência de uma relação linear entre causa e feito, deixará a
ambos inseguros e paralisados a se repetirem, como se estivessem aprisionados
num círculo, sempre voltando ao mesmo a cada volta. A posição subjetiva ativa
do pesquisador levará a ambos a descobrir que o “giro” é helicoidal, isto é,
jamais voltará ao aprisionamento do mesmo, jamais passará pelo mesmo ponto
outra vez, como dizia Heráclito há dois mil e quinhentos anos, “o rio não passa duas vezes sob a mesma ponte”.
Se soubermos, desde o início,
que a transformação é o que permanece e que este é o paradigma da complexidade,
saberemos que o “mecanismo” de evocação da memória é o que resta para orientar as
ações racionais; se soubermos que o sentido, o conhecimento, o conteúdo, surge,
aparece, ao se relacionar informações dispersas na memória externa, na memória
interna e na percepção individual da realidade, todas unidas segundo princípios
a reger o processo de pensar, saber-se-á que o pensamento sistêmico complexo
estará por perto todo o tempo; saber-se-á que o deslocamento do pensamento
analítico cartesiano e linear, a considerar apenas sistemas fechados como se
fossem relógios, para o pensamento sistêmico complexo, aberto, permitirá a
construção de conteúdos coerentes com o “impermanência” do real.
Portanto, desde o início, a
construção de uma posição subjetiva ativa precisa ser o centro de gravidade da
Educação, em todos os níveis. Quem ensina e quem aprende precisa incorporar a
noção de incerteza e de complexidade, precisa dispor de “mecanismos” de
evocação de memória, de pesquisa, precisa aceitar que não sabe e que o saber é
efêmero, precisa reconhecer que o pensamento sistêmico trás o inesperado, trás aquilo
que o pensamento cartesiano não considera.
Um Líder saberá de tudo isto!